Alta Definição: Nuno Pereira: “Eu vim-me embora da guerra na Ucrânia contrariado”

Joana Beleza Joana Beleza 8/26/23 - Episode Page - 48m - PDF Transcript

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Bem-vindo, Nuno.

Obrigado, obrigado.

Quanto desconfortável é estar nessa posição?

Muito.

E mais desconfortável ainda é dar uma entrevista a um amigo.

Eu ouvi fazer umas panquecas, mas não levam folha.

Pode levar umas folgazinhas.

Oh, meu Deus!

O caminho que isto está a levar está a prior que para.

Arranca!

Nuno Pereira, 75 anos.

45 anos.

Estou como sou no Alta-de-Finição.

Com a imagem de José Silva, Nuno Pereira,

assim, a Caminho, de Mikolajev.

Quanto regressas de um grande acontecimento,

como foi a Guerra da Ucrânia,

sentes o interesse das pessoas em querer saber mais,

em querer saber as tuas vivências, quando te encontrem?

Na rua, querem muito saber aquilo que eu vivi lá.

Eu digo sempre a mesma coisa.

Contei tudo, né?

Ou quase tudo.

A primeira vez neste conflito,

acertou-se em cheio do coração de Mikolajev.

Eu tive muitas mensagens de pessoas que eu nunca vi na vida,

a dizer que rezavam por mim, iam a fátima,

colocar uma vela para eu voltar em segurança,

e sentes esse carinho das pessoas e esse respeito.

A maioria dos estelaços caíram no rio que venha Mikolajev,

mas muitos deles acabaram por caírem no quintal

de algumas casas, como este pedaço de um miscilo russo.

E agora estás a procurrer o país,

que é em si mesmo também um grande acontecimento?

É, é um grande acontecimento de todos os anos,

e já lavam sete.

Eu faço olha à festa porque gosto mesmo de fazer,

sinto mesmo prazer em andar pelo país inteiro.

Sei que sou mais eu junto das tradições

e junto das pessoas que fazem as nossas tradições.

É cansativo, é muito cansativo.

Nós dormimos muito pouco ao longo deste mês de agosto,

mas é compensador com o carinho das pessoas

e poder mostrar o que é a tradição portuguesa.

Quem se deve lamber com isto aos imigrantes,

não é, Donas de Celeste?

É a verdade.

O espaço de um ano faz um ano para o outro futebol,

com um programa de rumorias e uma guerra.

Eu sinto-me confortável em todos os formatos,

só política que não é a minha praia.

Neste último ano foi diferente

porque estes vários formatos se misturaram no mesmo ano,

mas eu senti-me confortável.

Pode ser estranho para muita gente ver-me

num sítio a comer e a ver e a rir

e a dizer piadas num programa de rumorias

ou a vibrar com a seleção nacional de futebol

ou a relatar um bombardeamento em Mikolayev.

Para mim, não é nada estranho.

Os projetas que foram sendo abatidos pelas antiaéreas

acabaram por cair nesse rio, na água desse rio.

Antes de eu ir para o prânio, foi muito complicado para mim

porque senti que havia muita desconfiança

em relação àquilo que eu poderia fazer.

E eu tive a plena consciência

que havia muita gente na minha profissão

que não sabia do que eu era capaz de fazer como repórter.

Eu fui para a Ucrânia por minha livre vontade,

ninguém é obrigado, é uma coisa que as pessoas me perguntam muito.

É, para ter que ir, não é?

Foi obrigado a ir, não, ninguém é obrigado a ir.

Não é um regime militar, eu fui porque quis

e a vontade que eu tive de ir

foi de ver alguns colegas meus a trabalhar

e a trabalhar tão bem

e eu pensar que eu também quero fazer isto.

Cinco mil pessoas, mais de cinco mil

são dadas como mortas numa cidade

que tem mais de 90% de destruição.

O facto de eu fazer festas e rumarias,

o facto de eu fazer campeonatos do mundo de futebol

lidar com adeptos a minha vida inteira,

já passei por muitas situações de aperto

em estados de futebol, agressões, muita confusão,

muitos toiros, um pé de mim

e todas estas vivências da minha profissão

e da minha vida pessoal

do não ter nascido rico,

de não ter nascido num bairro rico

e deem comigo a pensar muitas vezes

no quarto da hotel na Ucrânia, deitado,

que às vezes era difícil de dormir,

que eu acharia nos aducar.

O facto de eu ter corrido tanto na minha profissão,

de ter feito tanta coisa,

ainda desde lá de cima até cá abaixo,

deu-me uma vida e as dificuldades

de eu saber o que é lutar

para poder ter alguma coisa.

As coisas não deviam que irem na mão.

Ali lutava-se para sobreviver,

completamente diferente do que nós vivemos.

Ali sabemos o que é de dificuldade.

Quando nós achamos que tivemos muitas dificuldades na vida,

comparado com aquilo, digamos nada,

e ver que mesmo assim,

há tanta vontade de andar para a frente

e de hoje não se entregarem,

dá-te uma lição muito grande,

é uma chapada muito grande.

Quando disse-te agora a possibilidade de ires,

que fatores é que entraram em ponderação

na tua decisão de ir ou não ir.

Eu aceitei sem falar com ninguém.

A Marta Reis, nossa diretorada junta de informação,

ligou-me à pergunta se eu estava disponível para ir.

Eu estava na mesa com a minha família toda.

Estava o pai, o meu irmão, as minhas filhas.

E tocou o telefone, ela faz-me esta pergunta

e eu, sem perguntar nada a ninguém, disse que sim.

E ali não disse nada a ninguém na mesa

para não estragar o almoço a toda a gente.

E quando a coisa ficou mesmo certa,

aí sim, comuniquei.

E ponderei aquilo que ia fazer sofrer os outros

por me ver num cenário de guerra.

Pensar o que é que o meu pai ia pensar.

O que é que as minhas filhas iam pensar,

ao ver o pai num cenário daqueles.

Mas esta é a minha profissão.

Qual foi a reação de eles quando te contaste?

O meu irmão foi muito má.

Não foi aquilo que eu estava à espera,

mas compreendi o que ele me disse.

E ele é o que mais sabe

o que é ser jornalista, porque também é.

E o meu irmão talvez, por ter esse sentimento,

me pediu para eu não ir.

Eu tenho muito respeito pelo meu irmão.

É a pessoa que eu mais respeito na vida.

E eu ter de contrariar o meu irmão foi...

Foi muito difícil.

Foi muito difícil.

O meu irmão para mim é como o meu pai.

Eu nunca o contrariei na vida.

O meu irmão mais velho tem mais sete anos do que eu.

Também quando era mais novo se contrariasse,

rapidamente deixava de contrariar, não é?

Se o meu irmão chegar sopê de mim e me cesse,

eu vou para um cenário de guerra,

eu pedi-lhe por tudo para ele não ir.

Eu compreendi perfeitamente o que ele me quis dizer.

Como é que disseste às tuas filhas?

O pai vai para a fronteira.

Foi assim que eles disseram.

Elas já não são pequeninas,

a Carolina tem 19,

o Matilde tem 16,

e percebem tudo,

nos olhos ensinam muito pouca coisa.

Aprendo-me, porque se calhar mais com elas

do que elas aprendem comigo,

mas perguntaram se eu ia entrar na Ucrânia,

e eu disse que em princípio não.

Eu sabia que ia entrar.

Não tinha certeza, portanto não menti.

O meu irmão sabia que eu ia.

Quando ele disse que ia para a fronteira,

ele sabia que estando ali,

eu ia fazer tudo para poder entrar,

e fiz tudo para poder entrar.

Não descansei enquanto não estava trabalhado

do lado de lá,

e depois de estar do lado de lá,

não queria sair do lado.

Eu vim me embora contrariado,

não queria vir embora.

Por quê?

É estranho eu dizer que estava acostado aquilo,

custa-me dizer isso,

mas eu estava acostado ao meu trabalho.

Tenho um companheiro,

um companheirássico, José Silva,

passou comigo aquele tempo todo,

os parabéns que as pessoas me dão,

e tudo aquilo que as pessoas me dizem,

eu faço a questão de dizer essas pessoas sempre.

Eu passei isto com outra pessoa,

não passei sozinho,

nós não fazemos televisão sozinhos.

A decisão foi complicada de voltar.

Falámos muito, eu e José falámos muito, muito, muito,

ficámos mais uma semana,

ficámos mais uma semana.

E eu ainda lá estava, coisa é,

habituámos àquele ritmo, àquele dia a dia,

das coisas ao perigo,

ao perigo.

Houve uma altura em que nós

tivemos de falar e decidimos que,

pesando tudo o que temos que fazer em Portugal,

e a pressão da família obviamente era grande,

também da família de José era grande,

para voltar,

mas o dia que nós voltámos da linha da frente,

aí olhámos um para o outro,

e foi e temos que ir embora.

Vamos ter que ir embora.

Porque nós estamos a gostar disto,

e a guerra tem um tempo para sair.

Foi uma coisa que um colega meu me disse,

antes de eu ir,

e tinha toda a razão.

Na volta da linha da frente,

a fazer a estrada da morte,

de regresso,

em Micole Aiva,

aí nós tomámos a decisão de que temos que sair daqui,

porque nós vamos acabar por morrer aqui.

Isto é tão viciante.

O facto de tu conseguires levar ao mundo

a realidade pura e dura,

em que não há um pingo de ensinação de nada,

permitem-te que tu só vaso ali espreitar,

nós acabámos por ficar muito mais do que espreitar,

porque ficámos sete horas ali.

Normalmente é uma hora,

só que nós falhámos uma janela de cedo,

lá está, por querer mostrar mais,

e acabou por nós conseguirmos perceber

que nós íamos ficar lá.

Se não véssemos embora íamos.

No dia seguinte nós queríamos ir outra vez

para a linha da frente,

e íamos sempre querer estar

um mais perto do bombardeamento possível,

para poder mostrar às pessoas como é que era,

não só contar como é que foi,

mas mostrar como é que é.

Saber sair é muito mais importante do que saber entrar.

Entrar é com impulso,

sair tem que sair com a cabeça.

Se sair por impulso, eu ainda lá estava.

Está que ir a artilharia mais pesada nesta zona,

temos mesmo de ir para o abrigo.

Todos os dias falávamos com as tuas filhas,

todos os dias,

com as minhas filhas, como o pai e com o meu irmão.

A primeira videochamada que eu fiz com as minhas filhas,

porque eu recusava-me a fazer videochamada,

porque não queria que elas me vissem,

tinha medo de acontecer alguma coisa

durante a videochamada que elas pudessem ver,

e lá houve uma noite que, ok,

elas tinham ido jantar fora,

e vamos fazer uma videochamada.

E era uma noite calma, tranquila,

era meia-noite em Odessa,

recolher o obrigatório,

não ouvi as nada.

Já tinha um tocado de xireno,

já tinha sido levantado o alerta,

e estamos a fazer a videochamada,

e elas estão os contentos no restaurante,

e ela perguntava-me que estavam as coisas,

e disse-me, olha, estão a ver.

Isto é seguro,

não há problema nenhum,

o pai está num hotel,

está confortável,

estou aqui na varanda,

silêncio da noite,

tentar tranquilizá-las

de que não havia grande perigo para o pai.

Nessa videochamada passada,

sei lá, 3, 4 minutos,

foi a maior explosão que houve em Odessa

enquanto eu lá tive no mês e meio.

Foi há menos de duas horas

que 3.600 disparados da crimeia

atingiram aqui os arredores de Odessa.

Atingiu 3 paiois enormes de gasolina,

e elas ouviram tudo,

e viram tudo.

Viram que eu fui contra a parede com o impacto,

e perguntaram o que estava a passar,

o que estava a passar,

e eu voltei para dentro do hotel e disse,

não, não, foi aqui uma porta que bateu,

foi aqui um barulho estranho,

também não sei o que é que é,

mas o pai já liga,

tem que desligar, tem que ver o que é que é.

A minha preocupação naquele momento

foi elas perceberam,

elas perceberam que isto foi uma bomba,

e perceberam que foi perto.

Mas dali e para a frente

foi vestir o colete,

por o que passei,

e voltei a falar com elas depois de entrar em direto.

Não nos é possível, nesta altura,

sair daqui para poder ir ao local

devido ao recolher obrigatório.

Eu sabia que elas não iam estar a ver o direto

porque estavam no restaurante,

e depois de fazer o direto,

voltei a falar com elas,

a dizer que tinha sido uma explosão,

mas que estava tudo bem,

que foi complicado.

Não fizemos mais vídeos chamados,

tinha sempre pouca rede para fazer vídeos chamados,

era sempre a desculpa que eu dava,

e foi complicado para elas.

Eu sei que foi muito complicado para elas,

sei que elas sofreram, sofreram muito.

Nunca me disseram, nunca me disseram.

Eu não me virei embora, nunca.

Como é que foi o dia de 18 de março?

Veste para o dia do pai, o dia da ida?

Foi muito complicado,

eu sempre passei o dia do pai com elas,

sempre passei o dia do pai com o meu pai,

e não passei o dia do pai com elas,

não passei várias datas importantes

com elas enquanto las tive.

Foram os dias mais complicados

que eu tive na Ucrânia,

foram, ninguém sabe disso,

ninguém sabe quando é que eu faço anos,

ninguém sabe quando é que a minha mãe fazia anos.

O dia da mãe é um dia especial

para todos aqueles que gostam das mães,

o dia do aniversário das mães

também é um dia muito importante,

e eu passei lá isso tudo,

passei, foi complicado.

Sobretudo sendo a primeira vez sem ela?

Sim, eu não pensei nisso antes de me ir embora,

eu não pensei em nada antes de me ir embora.

Não me lembrei que a minha mãe faz anos a 5 de abril,

não me lembrei que ia lá passar o dia da mãe,

que ainda não tinha passado nenhum dia da mãe sem ela,

ainda não tinha passado nenhum aniversário sem ela,

e isso foi muito complicado, isso foi muito complicado.

Crees que a ida para lá foi uma espécie de fuga

também da realidade aqui?

Sim, a minha mãe falou-se no dia 28 de janeiro,

e se ela tivesse caia, não tinha ido,

não lhe ia fazer isso.

Foi muito difícil,

foi muito difícil,

eu quero ser forte,

mas foi muito difícil.

No dia 5 acordar e não lhe poder ligar,

saber como o pai estava a passar o mesmo,

e como a irmã estava a passar o mesmo,

e eu estava em 4 mil quilómetros de distância,

com coleta à prova de bala,

e com um capacete na cabeça e um microfone na mão,

foi complicado, foi muito complicado.

O meu dia de aniversário foi muito complicado

porque recebi tantos telefonemas e tantas mensagens,

faltou uma,

e vai faltar sempre,

e eu não vou conseguir habituar essa ideia nunca.

Não consigo ultrapassar e não vou conseguir ultrapassar

isso da minha vida toda, não vou?

Eu nunca disse isto a ninguém,

eu nunca disse a ninguém que tinha saudades da minha mãe,

nem as pessoas estão mais perto,

mas tenho muita saudade da minha mãe.

Eu tentei ser o forte,

o divertido,

é para o palhaço,

sempre o que diz a piada, o que diz a brincadeira,

acabei por tentar viver isto e tentar aceitar isto,

sendo o brincalhão continuar a ser o palhaço,

mas eu não aceite isto, não?

Minha mãe teve 3 AVCs nos últimos anos,

o primeiro AVC que a minha mãe teve

estava para entrar em direto no Mundial, na Rússia, em 2018,

quando o meu irmão me ligou a dizer que a minha mãe tinha tido um AVC,

faltavam 5 minutos para entrar em direto,

num dia do jogo de Portugal,

eu ia entrar em missão e estar, sei lá, 10, 12 horas em direto,

e tive ali 5 minutos para falar com meu irmão,

eu sabia que ele não estava a mentir,

ele dizia que estava tudo bem,

eu sabia que não era assim,

e eu passei o dia todo a tentar falar com ele,

e não me deixavam falar com ela,

porque ela não conseguia falar,

tinha perdido essa capacidade naquela altura,

e eu insisti tanto,

eu achava que ela estava morta,

e que elas não prestavam a dizer que ela tinha morrido,

e eu disse, se vocês não me disserem,

se não me prezerem falar com ela, eu vou me embora,

eu vou me embora da Rússia, vou para aí,

aí sim, me prezero a falar com ela,

e percebi por que que não me tinham posto a falar com ela,

não percebi nada do que ela disse,

mas ela estava ali.

Moscovo é a capital do mundo,

não só do futebol por estes dias,

e estes adepto estão para onde despara tudo.

O tempo foi passando, e ela foi recuperando, recuperou fala,

nunca recuperou os movimentos como era,

a cadeira de rodas passou a ser parte do dia-a-dia,

mas o meu pai esteve sempre ali para ajudá-la.

O meu pai passou com a minha mãe,

e a minha mãe era uma dor muito difícil,

porque tal como o filho gostava de comer,

gostava de muito comer,

e não tinha travão para as coisas,

fumava, fumou até o fim,

e eu fazia quase de mãe dizer não comas isto,

não comas, não não comas, porque nunca tratei por tudo.

Tratei por tu, no meu pensamento, no caminho para o funeral,

e tratei por tu.

Nessa viagem para o funeral,

foi de Lisboa para o Cercal do Alentejo,

ela foi exportada no Cercal do Alentejo,

a terra dela,

e naquela viagem eu pedi-lhe desculpa mil vezes,

não queria que ela comecesse isto,

não queria que ela comecesse aquilo,

não queria que ela cuidasse da saúde dela,

que nunca cuidou,

eu dizia sempre,

se a mãe já chegou a esta idade a fazer o que faz,

se a mãe tivesse cuidado, vivia até aos 200 anos,

porque ela tinha uma saúde ferro,

só que não tinha cuidado nenhum,

e eu arrependi-me tanto de herdade, tanto na cabeça,

e naquela altura eu olhei para a Lisboa,

atrás do carro funerário na autoestrada,

para quê?

Para quê?

Ela era feliz era comer e beber,

ela era feliz a fazer todas aquelas coisas

que não devia fazer,

para castar mais anos infeliz,

era o que ela sempre me dizia,

para estacar mais anos infeliz,

não vou comer pão,

não vou comer chorizo,

eu adorava comer chorizo,

sou um pequeno almoço,

me presunto ao pequeno almoço,

eu hoje não lhes dizia nada.

Era só o filho tentar proteger a mãe também?

Sim.

Tal como ela me protegeu a vida inteira,

ela era a minha maior fã.

Queria sempre saber a terra onde eu estava,

no Alha-Festa,

para ela não orgulho o filho fazer o Alha-Festa,

estava a ver o filho nas tradições,

era típicamente portuguesa,

gostava das raízes,

de tudo o que é tradicional portuguesa,

e passou-me isso,

ia sempre à noite do favo,

e eu aprendi-se com ela,

aprendi a gostar de fato também com ela,

do bailarico,

e tinha aquela coisa que me avergonhava,

dizia a toda a gente que era a mãe do Nuno Pereira.

A maioria das pessoas dizia,

ah, o Nuno da Câmara Pereira,

a verdadeista,

ah, aquele assim,

ah, o das festas, cara, o das festas.

Ela tinha muito orgulho

de o filho se ter safado na vida,

ter vindo daquele bairro de bem-fica,

nascida em bem-fica,

criada em Alcântara,

que são duas grandes escolas de vida,

e safem-me, houve muitos outros,

da minha geração,

que não tiveram a mesma sorte que eu,

que também não lutaram aquilo que eu lutei,

a sua juventude para ir trabalhar,

eu abdi queia da minha juventude para ir trabalhar,

comecei a trabalhar muito cedo,

a primeira vez que trabalhei tinha 14 anos,

entreguei pisas,

trabalhei no restaurante,

servir à mesa,

trabalhei numa loja de animais,

de pássaros,

sempre a dourar animais,

até ir estar já para a Rádio Comercial,

em 95,

e depois seguir esta vida do jornalismo.

E eu fizeste uns relatos?

Eu não tinha jeito nenhum para fazer relatos,

eu era péssima a relatar jogos.

E uma vez que fizeste um relato de um jogo,

eu repeti o som ambiente do Estado,

na Rádio Comercial,

não havia dinheiro naquela altura para ir à madeira,

o Sporting jogava na madeira com o marítimo,

e o relato do jogo foi cá,

era o Fernando Emilio que fazia o relato,

e eu fazia a reportagem de pista, os dois no estúdio,

e o Fernando Emilio relatava o jogo pela televisão,

mas para não ser uma coisa muito estranha

de não ver o som ambiente,

o Nuno Caxeira que era o técnico de som,

fez uma trilha sonora,

e um outro relato de futebol,

uma branca na emissão de 24 segundos,

e colou 24 segundos,

sem fim,

só que naqueles 24 segundos,

ele não se apercebeu que perto do microfone

do som ambiente, alguém dizia assim,

já estou aqui há meia hora.

E então,

de 24 em 24 segundos,

ouviu-se um senhor a gritar,

já estou aqui há meia hora.

E o Fernando Emilio era muito engraçado,

então ele respondia,

também é, já estou aqui há 45 minutos,

vamos para a intervalo, tal, tal, tal, tal,

se pode que está a ganhar, tal, tal.

E eu, ali ao lado dele,

chorava a risa, e ia-mos respondendo

àquela pessoa que dizia sempre a mesma coisa

de 24 em 24 segundos,

durante uma hora e meia.

Seguiu este jornalismo com a influência do teu irmão?

Sim. O meu irmão é o meu ídolo,

é a pessoa que eu sempre quis cheir igual,

embora nunca tenha conseguido ser.

Nós somos tão diferentes.

Ele começou na rádio e começou muito novo,

também começou com 17 anos na rádio.

Eu ouvi ao meu irmão na rádio,

quando tinha 10 anos, e tinha aquele fascínio

de poder vir a ser como o meu irmão.

O meu irmão era o filho perfeito e correto, e tal.

Ele era muito mais perto do que eu,

porque nunca pedia nada,

mandava-me a mim pedir que eu era mais novo.

Fazia pela calada, era esperto,

eu não, era espalha-brasas,

e muito mal-criado.

Me dava um dinheiro para eu dizer as negras.

Era?

Havia um salão de jogos

em frente à loja do meu pai,

e eu ia para o colo dos senhores,

estava ali a jogar a batota,

e sentava-me no colo deles,

eles gostavam de mim,

era o miúdo mal-criado da rua,

e que fazia músicas com as negras.

Para dizer as negras, dava-me 2,5 anos,

e se fizesse uma música, dava-me 5 escudos,

e era para depois gastar nas máquinas.

Hoje em dia era impossível, né?

Uma criança tão pequenina numa loja, num salão de jogos,

a jogar flipuras em cima de uma grá de cervejas,

cheia das negras,

estão me darem mais 5 escudos para jogar flipuras.

Para minha mãe era um desgosto,

meu pai tinha algum orgulho.

Meu pai ainda vive na mesma casa,

eu ainda tenho muitos amigos lá na rua,

são aqueles que cresceram comigo,

da minha infância,

e as vidas acabaram por nos separar,

mas cada vez que lavo e me cruzo com eles,

ainda há o mesmo café que era a ginginha.

Nós crescemos naquela rua,

na estrada da damaia,

nós vamos à bola, já vamos à escondida,

já apanhada, eu fui mesmo muito feliz,

e eu passei a minha vida na rua, sempre na rua.

O que é que aprendeste com o teu pai?

A maior virtude

que o meu pai me transmitiu

foi a seriedade,

não enganar os outros.

Meu pai nasceu muito pobre,

os primeiros chapatos que calçou

foi para fazer o exame da 4ª classe,

e descalçou-os a seguir,

assim que saí do exame,

e voltou a calçar uns chapatos

para vir para Lisboa com 14 anos.

Meu pai nasceu em Santiago de Caçã,

eram 5 irmãos, meu pai o mais velho,

lá no Alentejo,

trabalhava a guardar ovelhas,

e nas quintas,

o meu avô que eu nunca conheci,

mas sinto como se

tivesse vivido a vida toda com ele,

de tanta história

que o meu pai contava do meu avô.

O orgulho que o meu pai sentia no pai dele

é o orgulho que eu sinto no meu pai.

O meu avô nunca quis que os filhos dele

trabalhassem no campo,

e todos os filhos dele tiveram uma profissão.

Meu pai reluja o oeiro,

todos eles conseguiram fazer a vida deles,

e cumprir o sonho do pai deles,

que era que eles não trabalhassem no campo,

que a vida do campo

é uma vida sofrida,

custa muito.

Há qualquer coisa de reluja oeiro naquilo que faz?

Muito.

Graças a Deus,

é a primeira pessoa que me diz isso.

E eu sempre disse,

o meu trabalho é um trabalho de orívos.

O meu texto,

é um texto de orívos.

Consigo brincar muito com as palavras,

jogar muito com as palavras.

É filigrana, e é um relógio que aquilo tudo

tem de bater certo,

no fim,

tem de dar as horas todas certas,

talvez por ter lidado tanto com orívos.

Eu era o filho de orívos,

o queimado na infância,

o queimado da cabeça também.

Eu queimei a cara quando tinha 10 anos,

a acender uma lareira, coisas de miúdos.

Eu via o meu pai acender a lareira,

e acender o fogareiro, passar as coisas e tal.

Então achei que tenta acender a lareira uma vez,

duas vezes, três vezes, com papel,

e aquilo não acendi, a lenha não pegava.

E eu via os mais velhos acenderem com álcool,

e havia aqueles frascos antigos

que saía a tampa inteira,

e metia a cabeça dentro da lareira,

tinha noção que não podia pôr muito.

Então despejei e tinha ficado

uma chama por baixo da lenha,

que eu não tinha visto.

Assim que o álcool cheguei lá abaixo,

o lume veio pelo frasco, o frasco estava cheio,

explodiu na minha cara.

A minha cara ardeu.

Eu era muito bonito, na altura, loiro de olhos azuis.

E depois fiquei assim, pronto.

Fiquei sem besteiras, fiquei sem sobrancelhas,

fiquei sem parte do cabelo

aqui à frente,

a pele da cara ficou nas mãos,

porque eu paguei o fogo com as minhas mãos.

Quando o meu pai entrou na sala,

eu tinha o cabelo à ardeira ainda,

e o meu pai apagou um pouco o cortinado.

Queimava o sofá, queimava a televisão.

Eu estive no hospital,

terminado semanas, só tinha uma visita

de uma hora por dia, de uma pessoa,

e totalmente vestida e estralizado

por causa de qualquer tipo de infecção.

A minha cara era encarna de viva.

Isto que eu tenho aqui não foram

borbulhas de adolescência.

Isto foi queimado,

e a minha cara ficou preto.

A ala do Hospital Dona Estefânia,

aquela ala não tinha espelhos,

propositadamente,

porque está a lidar com queimaduras,

pessoas desfiguradas, para as pessoas não se verem.

Mas os caixotes eram de inox

e eles passavam esfregão de arame

para nós não nos conseguirmos ver ao espelho.

E eu ariava com sabão

e guardanabras,

polia, polia, polia, polia,

para me conseguir ver ao espelho,

para conseguir ver como é que estava.

Eu estive durante muitos anos

aqui em duas marcas,

que eram das lágrimas,

porque as nossas lágrimas são salgadas,

imagina o que é a água salgada

na encarna de viva durante semanas.

Eu chorava dias inteiros,

tinha dois riscos assim

e com duas gotas aqui no fim

eu chorei todos os dias

que estive no Hospital.

Todos os dias até me virem embora.

Eu pedia ao meu pai

para me tirar do Hospital,

para me trazer para casa.

Foi uma revolta que o meu pai

não me trazia do Hospital

porque o meu pai tinha carta de condução,

a minha mãe não,

então ela não me podia tirar do Hospital.

O meu pai sofreu muito nessa altura

porque eu não queria ver-lo,

só queria ver a minha mãe.

E ele só me podia ver através de um vidro.

E a minha mãe dizia-me que o meu pai queria ir lá dentro

e eu dizia que não,

mas eu queria ver o meu pai.

E a partir de termina da altura

tornaste protetor dos teus

há um episódio de um assalto

à oriversaria de teu pai,

que é particularmente americano.

Meu pai teve a oriversaria a vida inteira

desde que prendeu a religiueiro

e depois montou o seu próprio estabelecimento

e teve uma oriversaria há muitos anos,

um negócio que foi morrendo

com o tempo

e ele ia morrendo lá dentro.

Eu e o meu irmão disseram-me muitas vezes

fazer-se esse negócio

que foi aquilo que lhe deu a vida toda.

E esse dia só chegou

quando entrou um assaltante na loja

com um pé de cabra na mão

e ele abriu 12 buracos na cabeça,

ele arrancou

uma quantidade de dentes que arrancou uma oralha

que o desfez.

O desfez por fora e o desfez por dentro.

Eu acho que até hoje ele nunca recuperou

desse dia, levaram-lhe o ouro da montra,

levaram-lhe aquelas coisas todas,

mas mais do que isso levaram-lhe a dignidade.

Eu vou várias vezes com ferro na cabeça.

Ele diz com orgulho

que ele tem uma cabeça dura e tem mesmo a cabeça dura.

Não desmeiou nunca.

Ele caiu, mas nunca se ajoalhou.

Tentou-se levantar sempre.

Só não conseguiu ficar de pé

porque escorregava no próprio sangue,

no chão.

Mas nunca se rendeu.

Isso dá-me orgulho no meu pai também.

Há alguém muito mais novo do que ele

com ferro na mão a bater-lhe na cabeça

e ele nunca se render.

Uma coisa que eu transmito às minhas filhas também.

Vocês não tenham medo de ninguém.

Nunca se rendam.

Nunca se rendam.

Lutem até ao fim

para estar de pé.

Nunca se ajoalhem à frente de ninguém.

A menos seja para pedir perdão.

Agora há alguém fazer-vos ajoalhar nunca

e há alguém tirar-vos a dignidade nunca.

É de pé.

E a morder-lhes nos chapatos.

É uma coisa que eu

aprendi onde nasci

a ter-me virar, a ter-me safar,

porque senão eras comido, não é?

Não podias deixar por a mão.

Porque se deixadas por a mão e se descesse

de parte fraca, comia onde?

E nunca dar essa parte fraca.

Isso orgulha-me no meu pai.

Ele mandou muito abaixo.

Eu cheguei ao hospital primeiro que o meu pai

e eu conheci o pela voz.

Não o conheci pela figura.

Imagina como é que estava a cara dele.

Mas vinha a andar pelo pé dele

com uma camisola de lenço sopada em sangue,

mas saiu da ambulância

a pé e entrou no hospital a pé,

lavado em sangue

e eu conheci o Nuno.

Ele chamou-me

porque eu estava olhando para ele.

Era o meu pai.

E ele diz-me Nuno.

Quando ele diz Nuno,

eu conheci a voz.

Foi aí que eu vi que era ele.

E...

Nessa altura

pensas em tudo na vida

e esqueces de uma quantidade de coisas

da vida.

Eu ver fazer mal a alguém

de quem gosto tanto perco.

E foi muito difícil

conseguir-me aguentar

e andei por tudo

a tentar a pessoa

que fez aquilo que foi presa.

E eu pedi por tudo à polícia para me deixar

falar com ele. Felizmente, não deixaram.

Se tivessem deixado

se calhar eu hoje não estava aqui.

Para defender os meus

eu faço qualquer coisa.

Qualquer coisa.

O que é que não contaste

daquilo que viste na Ucrânia?

O que é que fica só para ti?

Eu não contei que

o jornalista não é notícia.

Eu e o Zé ajudámos muita gente.

Muitas senhoras a carregar água

para casa, dar boleia,

postar auxílio das mais variadas maneiras

e depois

roda viva

do mais e mais e mais

e do não saber o que vai acontecer no próximo segundo.

O que é que vais encontrar?

Se chegas a um bombardeamento

e tu sabes que se o alvo foi atingido

é seguro estar-se ali.

Se o alvo não foi atingido

não é seguro estar-se ali

porque podem ter percebido

que não tinham atingido o alvo

e voltar a tentar atingir o alvo.

Muitas das coisas achou-te a perceber este cá.

Uma coisa lá

que lá estava a tentar

dar a notícia

era um bombardeamento a uma ponte

e eles não nos deixavam chegar a ponte.

O jornalista tenta sempre ir à procura

de uma maneira de poder mostrar

e eu vi nos mapas que

pela praia eu conseguia chegar lá

conseguia fazer imagem

para saber se a ponte tinha sido destruída ou não.

E assim foi.

Eu e o Zé, o André e o Vitor

e fomos pela praia andando

e o César começou a escalar aquilo

e vai lá só ver, mesmo não se faz imagem

ver se a ponte está inteira ou não

e ele só diz que a ponte está inteira

diz ao Zé que o Zé pode subir

o Zé sobe também trepa aqueles muros

e eu fiquei com o tripé cá embaixo

para sair da câmara, para sair o tripé

e ia perceber também

e chegamos à conclusão que não fazia sentido

e eu subi para aquele lado

porque alguém tinha que ficar cá embaixo

para depois receber as coisas e aquilo era fazer uma imagem

e eles foram e desapareceram na curva

e depois me mexeram no telemóvel

e eu e o Zé dizer

depois vai ter com nós que lá à frente

e eu olhei e disse

está bem e quando digo está bem

está um militar ucraniano

com uma arma apontada para mim

e o Zé muito vermelho

com a câmara no chão

e depois daquele militar aparece outro

e aparece outro e aparece outro

aquilo era uma base militar e nós não sabíamos

eles foram presos os três

só que os militares não conseguiam chegar

porque não sabiam que estava ali mais uma pessoa

quando ouviram a minha voz

ficaram mesmo assustados e todos apontaram as armas

eu vantei os braços

depois fiz assim que é uma coisa estúpida

mas fiz assim é um instinto

tipo está tudo bem

e eles levam-nos e eu daí a volta fui me entregar

para ir ter com o Zé

se eles o levaram eu tenho que estar perto dele

e fui andar pela praia

e aqui chega a parte do

com estúpido os nós fomos

as praias da Odessa estavam minadas

e nós sabíamos disso

só que esquecemos

por sorte

aquela parte da praia não estava minada

eles foram presos

eu fui me entregar, fiquei preso também

de tidos e ali ficamos

e pronto até nos libertarem

para saberem quem é que nós éramos

o que é que nós estávamos ali a fazer

e depois foram nos levar ao nosso carro

porque o nosso carro estava tão longe

que fomos no veículo militar

eles foram porreiros, levaram-nos até ao nosso carro

não eram os morteiros das bazucas

a parte de trás eram morteiros

a bater em uns nos outros

os estilhaços atravessaram este muro

de cimento armado com ferro

no seu interior

tivesse medo em algum momento?

não, nunca tive medo

pensei que podia morrer uma vez

e isitei de entrar naquele carro

naquela altura ou não

que foi a saída da linha da frente

porque os russos sabiam que nós estávamos ali

já nos tinham visto

aquele pequenão na nossa direção

não por sermos nós

mas porque nós estávamos com militares ucranianos

felizmente nenhum acertou

foram perto mas nenhum acertou

nenhum militar morreu naquele dia

nenhum ficou ferido

sei que aquele sítio desapareceu três dias depois

foi lançado um míssil de profundidade

e o búncaro onde eu tinha sete horas

foi atingido e aquilo desapareceu

não sei quantos dos militares

vestiveram comigo e me protegeram

durante aquelas sete horas

é estranho, é um sentimento estranho

de alguém que protege da vida sem te conhecer

de lado nenhum

e depois tu nunca mais

na vida vais saber se o bog dan está vivo

o bog dan foi o militar que me levou até a linha da frente

que eu conheci num bombardeamento

e que ele foi com a minha cara

eu fui com a cara dele e ele arriscou a vida dele

para mostrar ao mundo

aquilo que estava a passar

quando chegas a Portugal

a Lisboa e a SIC

do parque de estacionamento

estavam os tuos filhas

surpresa

então

fizeram uma surpresa

eu

fiquei triste quando cheguei ao aeroporto

e elas não estavam

eu nunca gostei que me fossem buscar o aeroporto

não era nada lamechas

acho que agora sou muito mais lamechas

estou velho né

eu cheguei do aeroporto e olhava

olhava e não as vi

pensei tão chateadas comigo

deu ter ido tanto tempo

e quando chega ao parque de estacionamento da SIC

elas estavam no parque de estacionamento da SIC

não tinham conseguido chegar a tempo ao aeroporto

e elas estavam escondidas no parque de estacionamento da SIC

e aí foi

foi aí que eu percebi

o quanto elas sofreram

e é preciso elas terem tido muita força

para nunca me terem dito

nunca me terem dito para eu me virem embora

nunca me terem dito para

nunca terem feito uma birra

de

nunca fizeram isso

e o facto de

chegar ali e elas estarem ali

a Matilda é uma tagarela

fala muito

a Carolina é muito calada

e ali a tagarela estava calada

não dizia nada

só se lançava

e

e a Carolina

foi aí que me pediu

para eu não ir mais

para eu não voltar ao crânio

para não voltar

a fazê-las passar por aquilo que passaram

e tu consegue prometer-me um coisa dessas?

não consegui

prometer

e a manhã outra vez

um dia

e a já

desculpa em filhas

mas

é algo que não se consegue explicar

e o pai safa-se

o pai safa-se sempre

em janeiro de 2010

estás tudo de férias

na República Dominicana

Pumba

mais uma

eu tinha ido de férias

para tentar realitar o meu casamento

que ele estava mal

casamento não era casamento

era a mãe da minha filha

porque andava sempre fora

isto é complicado

preciso de um estômago muito grande

para conseguir aguentar sempre fora

sempre em viagem, sempre atrás para frente

eu cheguei numa segunda-feira

aconteceu o terremoto no IT

estava na piscina do hotel

senti uma coisa estranha e não me apercebi que tinha sido um terremoto

é que ele é mesmo a ilha

mas eu estava 600 km

mas entretanto tinha a casa de banho ao quarto

e tinha a televisão ligada em um canal de notícias internacional

e vi que tinha havido um sismo

na ilha onde eu estava

e alerta de tsunami para aquela ilha

e quando tu ves, estás numa ilha

e ves na televisão, alerta de tsunami

para o sítio onde estás

primeira coisa, o instinto é olhar para a janela

para ver se a onda vem lá

e venho para baixo a correr

dizer a minha melhor na altura

e a minha filhera pequenita, a minha filha tinha um ano e meio

que tinha havido um sismo e havia alerta de tsunami

então fomos para a recessão do hotel

que era um ponto mais alto

depois retiraram o alerta de tsunami

e eu sabia que o telefone ia tocar

nasci que sabiam que eu estava lá de férias e tocou

para eu fazer um direto

e assim que o telefone tocou

tive a certeza que as minhas férias acabaram

e o casamento também

porque eu se sabia que não era capaz de dizer que não

e não era capaz de não fazer

assim foi, no outro dia de manhã

estava a arrancar primeiro para Santo Domingo

na República Dominicana

para a capital de carro

e depois para o IT entraram em um país

onde tinha morrido 300 mil pessoas

aqui Santo Domingo é a capital

e é também um ponto onde irá

passar muita da gente que irá ajudar para o IT

eu nunca tinha visto um muerto até esse dia

havia mortes por todo lado

o caminho para Porto Perran

feito de caminhão à boleia

eu estava sozinho, não tinha repórter de imagem

com os corpos na estrada

porque os corpos eram carregados em caminhões

tipo os caminhões das obras

aquelas banheiras gigantes atrás

com dezenas ou centenas de corpos lá dentro

para serem enterrados em vales comuns

e enchiam tanto que os caminhões batiam na estrada

e os corpos caíam para a estrada

e o caminhão continuava

então a estrada era um corpo aqui ou de corpo ali

e nos primeiros dias

de que eu apanhava a boleia

paravam para meter os corpos na beira da estrada

passado 2, 3 dias

isso foi o que me fez mais impressão

foi fechar os olhos

e quem irá conduzir, não parar

e passar por cima

um pum

isso foi o que mais impressão me fez

o cheiro de 300 mil pessoas mortas

com 42 graus

ao fim de 8 dias

é uma coisa muito escritiva

é uma coisa que fica em ti

não me consigo nunca esquecer desse cheiro

aí mudou-me a maneira de olhar para a vida

de saber o que é que cria da vida

para onde é que cria ir

quem é que era, vim separado

mas vim preparado para enfrentar a vida

de uma forma diferente com muito mais certeza

que tinha até ir de férias naquele dia

é o cenário de destruição

aquela fronteira

naquele cenário, quem é que está ali

naquele momento?

é o jornalista ou o homem?

é o jornalista para enfrentar a morte

e os fridos e o sangue e o cheiro

é o jornalista, mas é sempre o homem

eu sou eu, eu não visto uma capa

para ser jornalista

tem espaço para se competir com aquela dor

ou tem que ser o mais frio possível?

tem que ser o mais frio possível

para continuar a trabalhar

mas tem que sentir

eu sinto, posso dizer

como de 10 pessoas

com quem fiz reportagens na Ucrânia

porque ainda hoje me lembro delas

porque ainda hoje penso

se estarão vivas, estarão mortas

o que é que será feito da dona na dia

aquela velhota com 89 anos

faz 90 em dezembro

eu lembro-me destas coisas todas

porque me marcam, porque aquilo é sentido

os abraços que eu lhe dei

o que eu chorei depois

deixar ali aquela senhora desamparada

não é?

eu entrevistei em uma barreira militar

o que é que será feito do Bogdan

que me levou à linha da frente

o que é que será feito do Vassili

que me contou a história do carro dele

ser metralhado com a família lá dentro

e quando me estava a contar isto

fomos bombardeados

explodiram 30 rockettes por cima da nossa cabeça

batidos pelas anti-aéreas

com os estilhaços a cairem por cima de nós

eu sei os nomes deles

e por um metilho escondido, eu vou voltar lá

e vou à procura deles

o que é feito do Quirico

o Quirico era o meu guia

que era um dominicano com dois metros

em umas costas desta largura

e foi o meu anjo da guarda

durante aquele tempo todo que eu ative

foi quem se meteu à minha frente

nas várias situações

para ninguém me fazer mal

fui para o meu jornalista internacional

a chegar àquele cenário, fui eu

fui para o aeroporto da Punta Cana

e encontrei o Quirico

que não conseguia voo para Santo Domingo

e quando o Quirico chega

a Santo Domingo eu disse

não te vais embora, fica aqui esta noite

porque amanhã muito provavelmente

eu vou para o IT e quero que tu vasco comigo

e o Quirico não queria entrar no IT

tinha medo e ele acabou por aceitar

e acabou por ir comigo para o IT

e ter-me protegido ele dormia entre mim e a parede

eles iam me deitar juntar a parede

caso nós dormíamos era um chão de terra

tinha porta, mas não tinha janela nem teto

era só para não deverem dormir na rua

e um estrangeiro ali a dormir na rua

eu estava no chão encostado à parede

e ele deitava-se entre mim e a parede

e eu dizia sempre vira de para lá

que eu ouvir-me para cá, não os fazer conchinha

se ele ria muito

os primeiros dois dias não havia comida

soubo o que era ter fome

na primeira vez na vida, soubo o que era ter fome

nos primeiros dois dias não havia nada para comer

a primeira ração de combate chegou ao fim de dois dias

e foi o melhor arroz

com frango e feijão que eu comi na minha vida

com os vermelhos

só que o frango ia ser triturado inteiro

então estarás a comer

e estarás a tirar os bocadinhos doce

que vinha mostrados em qualquer lavo

de fome eu não vou morrer

certeza absoluta porque eu como tudo

eu não gosto de algumas coisas

mas quando chega a hora do aperto

eu como tudo

qual foi a melhor coisa que disseram sobre ti?

eu sou boa pessoa

é um objetivo que eu posso ter

é um objetivo de vida

é um mundo ser boa pessoa

um mundo é um bacana

alguém te deve um pedido de desculpas?

espero que peça

não, pensei que nunca vão pedir

mas há algumas pessoas que me deviam

mesmo pedir desculpas

fizeram coisas que não se fazem

o que é que é fazer-te mal?

fazer-me mal é querer-me ferir

querer-me atingir propositadamente

e por maldade

erramos com os nossos filhos

mas não erramos de propósito

isso é que eu não me perdoa ninguém

então alguém que tu tens como

companheiro, amigo

só por inveja

ou só porque sim

querer-me fazer mal isso eu não te ler

pedir-te desculpar todas as pessoas a quem querias pedir?

pedir

se não pedir

desculpem

mas acho que eu não me custa nada pedir desculpa

deveria ter pedido desculpar a minha mãe

de ter sido privado

de ter comido mais coisas que gostava

de ter feito mais coisas

que gostava e que lhe faziam mal

hoje

peço desculpa porque não

não devia ter feito

fazia por proteção e por a bem dela

para ela estar mais anos comigo

mas ela ia ser infeliz

se não fizesse isso

tenho que lhe pedir desculpa, pedi-lhe muitas vezes

desculpa naquela viagem

e eu vou apolintejar

se te fosse garantido uma resposta

a qualquer pergunta tua

o que é que tu querias mesmo saber?

era saber o que é que as pessoas

sentem por mim

porque eu sou um parvalhão nos sentimentos

eu sou um parvalhão

dou tudo e gosto tanto de dar

e de ver os outros felizes

proporcionar que os outros sejam felizes

e se traz de muitos desabores na vida

porque tu das tanto

que das até quem não merece

e era saber a resposta

sobre se esta pessoa merece ou não merece

que eu esteja a fazer isto

que eu abdique

disto na minha vida para lhe dar a ela

porque abdico de muitas coisas na minha vida

para dar aos outros

eu tive muitas ilusões na vida

por ser tão amigo

mas olha, tive muitas alegrias na minha vida

por ser tão amigo

por gostar tanto das pessoas que goste realmente

mais vezes goste dele

porque nunca lhe digo

não abraça o meu pai

não abraça as pessoas de quem goste

não digo que goste as pessoas de quem goste

e do quanto os admiro

o que é que dizem estes olhos?

espero que digam que

para além de malandro

que toda a gente me disse sempre

que tenho olhos de malandro

para além de bonitos

que dizem que são

que as senhoras amigas da minha mãe

que digam que o nono é bom ou a boa pessoa

espero que isso esteja nos meus olhos

que esteja

que se consiga ver

que

que eu sou boa pessoa

e que tenho um bom fundo

e que tenho um bom coração

e que sou muito amigo

dos meus amigos

e abdico de

praticamente tudo na vida

para ajudar um amigo

para dar um amigo

para dar aos outros

espero que seja isso

que os meus olhos transmitam

para além de a beleza no troco

tem?

obrigado

obrigado, meu irmão

obrigado, eu chorei muito

não, porque esteja chorado mais

eu sabia que ia chorar

mas eu não queria chorar

e eu

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Neste Alta Definição em podcast emitido originalmente a 3 de setembro de 2022, Daniel Oliveira recebe o jornalista da SIC, Nuno Pereira. Conhecido pela rubrica 'Olha a Festa', que assina com Joana Latino, recorda nesta emissão o tempo que passou na Ucrânia como enviado especial durante os primeiros meses da invasão: "a guerra tem um tempo para se sair. Isto é tão viciante, o facto de tu conseguires levar ao mundo a realidade pura e dura, em que não há um pingo de encenação de nada". Nuno Pereira recorda ainda os anos que passou a cuidar da sua mãe e do orgulho que esta sentia por si e pelo seu trabalho. "Queria sempre saber em que terra eu estava", conta sobre a pessoa de quem tem muitas saudades.

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