Alta Definição: José Milhazes sobre os tempos passados na Rússia: "Podem chamar-lhe cegueira ideológica. Não fico chateado"

Joana Beleza Joana Beleza 4/9/23 - Episode Page - 47m - PDF Transcript

Bem-vindo, José Melhazes. Obrigado pelo convite.

Sugirmos fazer-nos esta entrevista em russo. Vamos a isso.

Podes começar? Não, já tens que ser tu, porque tu é

a que é o interrogador. Niponimaiu.

Ah, bem, então se não compreendos, vai melhor passar a falar português.

Porque foi isso que desafou quando chegaste ao União Soviética.

Exato. Mas às vezes funcionava mal, porque nós dizíamos também Niponimaiu, não compreendo,

e os russos achavam que nós estávamos a brincar, a gozar com eles.

Como eu domino bastante bem o Calam. Às vezes só apetece chamar os nomes mais incríveis

aos autores deste artesel Bagem, que foi feito em Caramatórsica.

José Melhazes, 64 anos, e este ao começou no alta definição.

As sanções não vão fazer parar pute.

Hoje em dia, em Portugal, não há que eu não reconheça tua voz, tens essa emoção.

Tenho, mas foi essa a voz que Deus me deu.

A determinada altura quando eu entrei na rádio foi algo de algumas críticas, devido

ao meu sotaque do Norte, até um famoso jornalista nosso escrevia, havia duas coisas, a banir

da nossa comunicação social, a voz de José Melhazes e o sotaque das Tias de Cascas.

Eu nunca consegui perder o sotaque, nem tentei, nem sei se pode perder o sotaque ou não.

As pessoas parecem que me entendem, ainda ninguém se queixou de não me entender.

O músculo está a tentar mostrar que a guerra na Ucrânia é a chamada terceira guerra patriótica.

Ter uma voz incómoda traz que incomodos.

Como se costuma dizer, apanhas por ter cão e apanhas por não ter.

Não se pode agradar a Deus e ao diabo, principalmente em determinadas situações.

Por exemplo, o caso de uma guerra, eu como comentador político, não posso fugir à

questão de quem começou a guerra.

Isto é evidente, claro que há muitas pessoas que contestam, ah, vocês devem ser neutros,

os comentadores políticos e tudo isso.

Claro que, eu também não defendo que esteja agora a fazer do jornalismo como um adepto

de um clube de futebol ou de um partido político, não, também não sou dessa opinião, mas

acho que nós temos direito a ter a nossa opinião.

Não esperemos conversações, a sério, a Rússia não as quer.

Eu não me lembro de, de, de, de, de afectos por parte do meu pai.

Quando é que sentiste que passaste a ter uma voz, passaste a ter a opinião, a poder

dar a opinião?

Olha, Daniel, essa pergunta é muito difícil, porque às vezes quando dávamos a nossa opinião

a vera dos meus pais, tinha uma certa dificuldade.

O que que acontecia?

Olha, surgia a primeira fake news, era a primeira fake news, quando chegavas à porta

e a tua mãe te dizia, filho entra que eu não te bato.

E eu desde muito novo, não me lembro de ser um guia ou um orador, era um rapaz normal,

malandreco como aos outros, filhos de pescadores.

Eu não me recordo de, a não ser até imusia, constante dizer aos meus pais que queria estudar

e meu pai dizia que o filho do burro não pode ser cavalo.

E então andávamos neste dilema, claro que o meu pai ficava sempre muito satisfeito

vendo a minha carreira, porque no fim de contas é um complexo que ainda hoje muita gente,

na chamada classe pescatória da povo e das cachinas, tem esta ideia de que eles estão

condenados a ir para o mar, não podem, digamos, ser doutores etc.

E digamos que era uma forma de temosia, porque eu sabia que se não passasse por um

seguinte ia para o mar.

E o mar, como se costuma dizer na minha terra, o mar tem caizinhas.

Eu nasci na fronteira entre a pova e a bila do Conde.

E nós íamos à pova quando éramos pequenos, não íamos muito frequentemente.

Primeiro, quando era no verão, os filhos dos pescadores e os pescadores eram mal recebidos

nas praias.

Nós éramos enxotados, como se costumava dizer.

Então nós vínhamos para onde saiu o Porto da Povua, fazíamos praia em pelota e às

vezes roubávamos a roupa toda e íamos em pelota para casa.

E lá tínhamos a minha mãe a dizer, filho, entra...

Que não te bate.

Que não te bate.

Mas o que é que estava em pelota?

Porque era uma forma de estar, nós estávamos habituados àquilo.

A minha infância era uma infância nesse sentido muito livre.

Quando nós, por exemplo, não tínhamos aulas, nós saímos de manhã e apareciamos às vezes

só à noite a casa.

Andávamos pelos campos lá por lagos ou apanhar ameijos no Porto, caracóis, roubar milho

dos campos.

Era tudo porque naquela altura eu não posso dizer que passei fome.

Não passei fome no sentido em que faltava comida.

Mas era uma comida que hoje talvez seja considerada muito positiva, mas naquela

altura para nós era um sacrifício que era comer todos os dias peixes de manhã e à

noite.

E só vermos carne normalmente era frango, ao domingo.

E eu já não podia ver peixe, pois comecei a apreciar outra vez o peixe quando fui

pau nesse ambiente.

O facto de ter esquecido com essas raízes e filho de pescadores, em que é que isso hoje

te molda?

Uma capacidade de resiliência maior?

Eu acho que essa é uma das qualidades que me transmitiram os meus e também uma vontade

de ir sempre mais longe, e daí que eu gostava de novos desafios e gostei sempre.

E essa era uma das características dos pescadores.

Tenho uma vida muito dura a eles.

Era incrível.

O meu pai andou no bacalhau, a pesca do bacalhau era a escravidão absoluta, porque se eles

fizessem oito viagens ao bacalhau não iam para a guerra colonial.

Eu não tive nenhum parente na guerra colonial, por causa disso.

Só que o meu pai dizia, entre a guerra colonial e a pesca do bacalhau, bem no diabo escolha,

que eram seis meses praticamente dentro do navio, em condições higiétnicas, nenhuma.

Só tomavam banho quando chegavam à Terra Nova?

É quando iam à Terra Nova, sim.

Às vezes mais do mês, sem senso?

Sim, sim.

Despeolhos e pulgas eram acompanhidos.

E depois, a forma como eram tratados pelos próprios capitães dos navios, havia alguns

que se distinguiam pela crueldade e até recebiam depois alcunhas do tipo mata-cais,

porque era extremamente cruel para com os pescadores.

E à mínima desobediência, os pescadores podiam, quando chegasse à Terra, serem entregues

ápides.

Era uma autêntica escravatura.

Até o meu irmão mais velho ainda foi para o bacalhau para não ir para a guerra colonial,

e isso marcava-nos a nós imenso, porque entre a partida do barco e a chegada, a minha mãe

às vezes tinha que ir ao prego, porque acabava o dinheiro e metia lá roupa ou algum ouro

que tivesse, que não era muito, como devem imaginar.

E depois, quando meu pai vinha, tentava tirar outra vez, e andávamos nisto sistematicamente.

Depois, meu pai tentou outras coisas na vida, foi para o Moçambique pescar camarão, mas

nunca enriqueceu.

Essa dureza no mar não seifava a capacidade de afeto.

Claro que seifava, porque eu não me lembro de afetos por parte do meu pai.

Não é que eu fosse duro, não era uma pessoa excelente, eu devolho muito, mas não me

lembro.

Não me lembro de, como dissei, olha, fizeste bem assim mesmo, não, quando era criança

não.

Depois, começou já quando eu era grande, mas também porque já começava a habituar-se

aos netinhos e ia ter que fazer alguns ilogios também aos netinhos.

Os afetos ali eram uma coisa terrível, porque existia efetivamente e existe amor as mães

que estão dispostas a tudo, os pais, os irmãos, há uma grande solidariedade, mas isso muitas

as vezes não se reflete em gestos, reflete-se num momento de dificuldade quando é preciso

apoio.

Daí que eu não me lembro que o meu pai me tivesse feito uma festinha na cabeça, bater

bateu porque, pronto, isso era o panoço de cada dia naquela zona.

Agora, por exemplo, os meus avós lembram muito bem, principalmente os meus avós maternos

com quem eu vivi.

Abriram-me ao mundo, por exemplo, das preguidinações, do futebol, porque quando iam, levavam um

neto sempre, e muitas vezes foi eu, foi aí que me lembro de ter ido ver união de tomário

vozinha, ou ir à nossa cera da alegria, ou ir à samba da porta aberta, e isso aí ajudou-me

a descobrir o mundo fora daquele pequeno espaço que era as caixinas.

Como é que era este rapaz em pequeno?

Uma categoria, iam.

Uma categoria, devia ser fresco, devia ser, para rincalhar-me.

Em que é que se sentia mais a falta de recursos no teu crescimento?

Olha, era para comprar libros, era para comprar roupa e sapatos, nós muitas vezes no inverno

íamos de tamanco para a escola, alguns iam e sem tamancos, depois havia um pouco de

sorte da minha parte é que eu tinha um irmão mais velho que foi para o mar com 11 anos,

e que de vez em quando comprava uma roupa melhor para ele, e então quando não lhe

servia aí ele era o herdeiro.

É verdade que quando eu estudei no seminário as coisas eram um pouco melhores porque toda

a família ajudava, toda a família criou um padre, e então havia uma ajuda muito maior.

Antes disso, os manuais, por exemplo, eu ia trabalhar todos os brons para ganhar para

os manuais, desde estar a lavar peças numa garagem de automóveis, ao senhor Isaac, até

a lavandaria de S. Zarreira, passando pela tabacaria do guarda-sol e também numa fábrica

de confeções que faziam fatos macaco para a Suíça.

Uma vez partiste um braço e não deu para ir ao hospital, não havia recursos?

Não, não, não.

Qual recursos?

Na altura a minha mãe levou-me a um veterinário que ficava em Amorinho, e o veterinário

felizmente tratou-me bem do braço, matei-me o braço no lugar, às vezes quando zoe,

quando está umidade ouíssemos, e isso também é da idade a culpa não é de veterinário

que fez um excelente trabalho.

Ouvir-te perto de tantas conversas de pescadores queimava uma série de etapas no crescimento

do miúdo, não é?

Sim, nós entravamos no mundo, muitas das vezes, bruscamente, por exemplo, as histórias

das bruxas, as histórias dos novos homens, lá diziam que na Póvoa e nas Caxinas havia

alguns, havia lá uma série de bruxas, já quem diga que era a minha família também,

tinha bruxa e eu lembro-me que a minha mãe me levava uma senhora na Póvoa, levava-me

para eu fazer companhia, a minha mãe levava roupa do meu pai para saber como é que estava

o meu pai na pesca do Bacalhau, ou em África, porque ali é um povo extremamente religioso,

mas tem essa parte enorme de querendo-se, quer dizer, aqui todos os santos ajudam e

mais alguns, porque a morte estava sempre presente, nós chegávamos a casa e ouvimos

toda a gente a chorar e a gritar, e perguntávamos quem morreu, uma vez disseram que foi o meu

pai, felizmente não foi, tinha sido um primo dele que tinha o mesmo nome, mas o meu pai

como o gato tinha sete vidas, teve um desastre muito grande na Imoçambique, teve outro na

terra nova e ia-se sempre meter numa nova tentando dar uma vida melhor aos filhos,

porque eram quantidades industriais os filhos ali na Póvoa, a minha família era uma família

de pescadores normal, nós somos sete, o meu irmão mais velho já faleceu e mais cinco

ir mais, mas havia o recorde que era o recorde nacional, era 22 filhos, as famílias vizinhas

também eram sempre em grandes quantidades, nesse sentido não havia falta de gente para

brincar.

Como é que os pais preparavam os filhos para a vida, pelo exemplo?

É, ali não havia grandes aulas de pedagogia, ou passas, para o ano seguinte ou mais para

o mar, as mulheres tinham uma indústria conserveira e pouco mais, até que se casassem depois

começassem a ter filhos, mas era mais o exemplo, nós olharmos para os nossos pais, de forma

como eles atuavam, como eles sacrificavam, isso era o maior exemplo que eu tive na vida.

O que é que tu recordas com mais saudade dos teus pais?

O sorriso deles já há muito tarde, quando me iam visitar ou eu ia buscar-los, e lembro-me

desse sorriso de felicidade, e ficavam sempre muito felizes porque os netos estudavam, já

não tinham pescadores, meu pai, no dia em que faleceu, telefonaram-me e disseram para

eu e o meu filho irmos lá, que iria acontecer aquilo mais tarde ou mais cedo, e quando nós

lá chegávamos, estávamos os netos todos reunidos à volta da cama, ele estava à espera

do meu filho, e pediu aos netos, disse, nenhum de nós vai para o mar, jurem, falou com o

meu filho, o último neto vai chegar, e depois fecham os olhos.

Isto para os netos deixa uma recordação muito forte, que era uma vida difícil, e que

efetivamente resultou, porque os netos foram além, eu não tenho nada contra os pescadores,

eu tenho cunhados, por exemplo, pescadores, e eu tenho a contrás mais condições de segurança

em que eles trabalham, e eu divido também aos baixos salários, o pescador é uma profissão

muito digna, só que efetivamente é muito engrato e arriscada, eu vi estando em terra

barcos a serem devorados à entrada do Porto da Povo, pescadores a morrerem, sem nos poderem

prestar ajuda, e isto aqui doia, e não só deixava a marca, e até hoje se me convidarem

para ir dar um passeio do barco, e eu arranjo todas e mais algumas explicações, justificações

para não ir.

Porque ias morrendo afogado?

Ia morrendo afogado, e porque para mim o mar é muito lindo, mas não me arrisco a meter

em aventuras porque não é para mim.

Ficaste preso com os pés, não é?

Sim, sim, na lama, e foi o meu irmão mais velho que me salvam, e isso aí foi um trauma

para a vida inteira.

O teu irmão Felipe era o teu herói?

Sim, porque o meu irmão foi um grande suporte na minha vida, era uma pessoa que me apoiava

muito até do ponto de vista material, e eu quando era novo tinha relação aquelas fricções

entre irmãos, que são normais, mas a partir dos 11, 12 anos dava-nos muito, muito bem

com ele.

A morte dele para mim foi muito, muito dolorosa, porque nós entre os irmãos tínhamos sempre

uma relação muito, muito estreita e muito solidária, ele já morreu quando já tinha

uma idade um bocado avançada, e para mim foi um grande choque, mas também era como

o meu pai, ele era a cópia do meu pai, o meu pai pedia-lhe por amor de Deus para ele

não ir para o mar, ele foi.

Depois também andou em tudo que era navios, como siais, no Bacalhau também, plataformas

de petróleo, diagnosticar-lhe a doença em Aberdín, na Escócia, e foi transportado

para o Portugal, depois foi tratado aqui, mas já não havia hipótese de salvação.

Desde o novo a ver tanta morte por perto dos pescadores que não voltavam, como é que

se aprende a lidar com isso?

Quer dizer, dois sempre é uma dor, mas é inovitável.

Eu tenho uma experiência, um bocado, digamos, traumática, a filha do meu irmão mais velho

morreu com 34 anos, e para nós isso foi um choque, uma dor terrível, porque uma jovem

e aí nós achamos que até há uma clara injustiça na morte, porque isto é também natural,

dos tempos modernos, nós estamos habituados a que as pessoas vivam muito.

A mim doime, porque é sempre um bocado inesperado, mesmo que esteja à espera, é uma perda.

Amigos, de parentes, mas é uma coisa absolutamente inovitável, que algum dia vai chegar, mas

desta certeza eu tenho, a devir o dia.

Foi o doce gravemente, e fiquei internado muito tempo.

9 meses?

Sim, 9 meses.

Você estivesse numa educação religiosa que acaba depois de um sonho?

Foi um sonho que eu tive quando eu estava no seminário, em que eu vi Deus e Deus disse

para eu ir embora do seminário, e eu no outro dia de manhã levanta-me e foi embora.

Estava perfeitamente convencido que não estava ali a fazer nada, e eu fui para o seminário

porque queria ser padre, e esse sonho marcou-me muito, embora gostasse do seminário onde

se tivesse, nós lá tínhamos uma educação e uma cultura absolutamente única, mas pronto,

chegou aquele momento e eu vi-me embora.

Depois a rápida adesão ao Partido Comunista, dá-se porque tenhas respostas fáceis a

perguntas difíceis?

É uma das razões, Daniel, porque se no cristianismo, o paraíso bem depois da morte, no comunismo

ele é construído na terra, e eu acreditei que era possível construir na terra uma

sociedade quase ideal, e foi por isso que foi para a juventude comunista, e depois foi

para a união soviética, e depois paraíso...

Nunca as casas têm encontrado o paraíso?

Não, e acho que ele não existe neste mundo, no outro não sei, mas neste não.

Por que?

Porque o ser humano tem um problema, que é pensar, isso de um ponto de vista positivo,

nós destacamos dos animais porque pensamos, mas ao pensarmos, nós conseguimos fazer crueldades

que os animais não conseguem fazer, nós conseguimos criar o mal, e isso aí faz com

que a sociedade humana nunca atinja uma perfeição que nos possa deixar descansados.

Nós estamos aparentemente, como estábamos, numa vida normal, todo dia 23 de fevereiro,

23-24, e no dia 24 o seu Putin invada a Ucrânia e vira-nos a vida toda para explorar.

A Rússia começou a invadir a Ucrânia esta madrugada, num dos episódios mais graves,

entre duas nações europeias.

Isto só pode ser feito por seres humanos, é isso que me leva a acreditar que os seres

humanos devem se equilibrarmos aos outros, e muitas das vezes não, nós deixamos que

alguns seres humanos se apropriem do poder e do poder absoluto, e isso é uma desgraça,

uma desgraça total, porque o poder absoluto acaba sempre mal, não conhece nenhuma sociedade

em nenhum país onde o poder absoluto lobo é um certo nível de felicidade.

E essa crença e essa ideologia que tiveste durante tanto tempo, chega hoje a ser uma

frustração para ti, uma sensação de tempo perdido ou não?

Não, não é porque eu acho que mudar de ideias é normal, e eu não tenho problema em reconhecer

que estou errado.

Se eu estou a olhar e a ver que não é aquilo que eu quero, não é aquilo que eu defendo,

que eu me enganei na escolha, eu reconheço e vou à procura, eu fico surpreendido é

com aquelas pessoas que já têm ideias acabadas para toda a vida, e muitas das vezes não

mudam de seguirem ideias erradas e até criminosas, só para mostrarem aquilo que eles dizem

que são consequentes, quer dizer, ser consequente no mal, não é nenhuma virtude, pelo contrário,

eu se estou a ver que uma sociedade ser errada, que é uma sociedade extremamente ditatorial,

repressiva, que anula o indivíduo, que me proíbe de ler os livros que eu quero ou os

jornais que eu quero, eu não concordo, eu vou à procura de outra sociedade, posso não

encontrar, claro que eu não encontrei a sociedade ideal.

Tu é em 1976, no dia 16 de agosto, diz antes, daqui uma semana, é para partir, não aceite

pela família.

Minha mãe chorava e pedia-me desjueios e o meu pai também não queria assinar o papel,

porque naquela altura o passaporte era preciso ter 21 anos e o meu pai não queria assinar-me,

o passaporte disse, olha pai, se tu não assinas assim não é, porque a tua letra eu sei copiá-la,

viu-se que eu estava a sacar a férremos a decisão e ele assinou, entregou-me o papel

e foi-se deitar para o barco, em matazinhos ela andava numa treineira naquela altura e

o foi acima do cais e ele foi-se deitar sem dizer mais nada.

Foi como que uma libertação eu preciso dizer?

Quer dizer, eu não colocava as coisas assim, porque eu não ia fugir de casa, eu pretendia

ir para um lugar melhor, onde teria novas oportunidades, onde eu iria ver uma sociedade

melhor, uma sociedade mais justa e foi-se como o bom.

Eu não sou daqueles que tive de fugir de casa, era mesmo chamar-me-lhe assim segueira

ideológica, podem chamar assim, eu não fico zangado.

Como é que recordas o dia 9 de setembro?

Olha, daqueles dias em que ficaram na cabeça marcados, porque a mala, as irmãs, com o meu

sobrinho afilhado, ao colo, a irmos a pé de casa até esta sandapóba, só me lembro

da minha mãe chorar mais nada, mirei as costas, também com uma lágrima no olho, mas não

me lembro de mais nada.

E depois da tal carruagem a vapor que ia da póbaa até ao Porto, aquela viagem que

era terrível, entre o Porto e Lisboa, no convéio da meia-noite, era uma tortura, porque lá

dentro era um calor infernal, eu cheguei a Lisboa, ainda era cedo para ir a sede do

partido, receberam o passaporte com o Visto, fui dormir ali para um banco que havia ali

perto do campo pequeno, e fui buscar o Visto, porque foi para o aeroporto, era tudo novo

para mim, começava a ver as pessoas a chegarem, fiquei muito surpreendido porque alguns traziam

muitas malas.

O que é que levavas na tua?

Levavam umas botas de couro, umas calças de ganga, dois libros, e pouco mais, tinha

15kg.

Porque eu ia para o paraíso, para o paraíso, não temos problema com essas coisas.

Agora, quando comecei a ver aquela gente toda com as malas todas, eu fiquei um bocado

intrigado.

Eu só compreendi já depois quando cheguei a mescó, mandaram-nos roupa de inverno, uma

roupa muito soviética, umas botas pesadas, sobretudo os pesados, como se vê os dirigentes

comunistas, sem gola de pele, claro, e aqueles chapéus, a chápeca preta para andar no

inverno, e então, nos primeiros tempos, aqueles que tinham mais roupa emprestavam roupa

aos outros para irmos verindo uma coisa, porque lá na União Soviética, nós chegávamos

a uma loja e compravamos aquilo que queríamos, não havia, era impossível obstir aquilo que

lá vendiam.

Quanto tempo tiveste até rissar?

Três anos.

No início do segundo ano eu duci, gravemente, e fiquei internado muito tempo.

Nove meses?

Sim, nove meses.

E esse ano, claro, que perdi, em Portugal, a doença pulmonar neste caso a tuberculose,

já não se interna nas pessoas, na União Soviética era obrigatório um entrenamento.

E então, tinhas que lastar até que o médico disse, já pode ir embora.

E da primeira vez foram nove meses, pera.

Melhorei muito o meu rosto, tinha, por exemplo, muitos intelectuais, músicos, pintores,

porque a tuberculose não, a União Soviética, era uma doença muito difundida.

E então, no hospital, tínhamos boas companhias.

Além disso, depois das 11 da noite, quando fechavam as luzes, nós viemos para o quarto

de alguém, e aí era comer e beber, aí que se tratava da saúde.

E o único dia em que me sinto muito, muito bom, foi a noite do Natal, estar sozinho

no hospital da noite do Natal.

Os sobiéticos não festejavam o Natal, e aí dueu.

Tanto mais naquela altura, não podia chegar a um telefone, e mesmo pagando, telefonar

para casa e esquirar os correios, encomendar uma chamada que podia demorar dias.

Lembro que o meu filho quando nasceu eu precisei de uma semana para informar a minha família.

No hospital, eu sabia da gravidade da situação, mas todos ali estábamos no mesmo barco, jogávamos

anduolo, íamos passear aos domingos lá para os parques, beber umas cervejas, dar uns passeios,

para metermos com umas raparigas.

Tentava fazer uma vida normal, embora soubéssemos que às 8 da noite tínhamos que estar no

hospital, porque aí já começavam a controlar as entradas e sair, depois haviam as analas

e os telhados para onde se entravam nos momentos mais difíceis.

Eu lembro-me de quando foi do ano novo e a temperatura na rua, o tremómetro, desceu

aos 40 graus negativos.

Tinha a roupa normal e tinha dentro do saco o pijama do hospital, regressei no outro dia

de manhã às 7 da manhã.

O saco que eu levava era um saco de pele sintética, e aquilo congele, pá, tenho que partir o

saco, para conseguir tirar de lá o sobretudo.

E antes disso, quando chegaste, como é que se namorava em russo?

Como é que desafava mesmo?

Isso era um problema, era um problema porque não sabia a língua, eu lembro-me de como

dobaram a ver um filme e eu claro que não percebi mesmo nada, mas lá fiquei a hora e meia, olha

a pó e a crã, e então perguntava-me lá, raparia, então, estás a gostar, estou, claro

que não estava a gostar nada porque não sabia de nada.

Foi difícil para ti aprender?

Não, quer dizer, eu nunca fui bom em línguas estrangeiras, é russo, tive que ser, não

havia outra hipótese, se tu queres comer, tens que saber falar.

E depois quando começamos a contactar com os rusos, aí as coisas começam a acelerar.

O mais difícil, por exemplo, para mim foi aprender a escrever o ciríligo, porque é

um alfabeto baseado no grego e que tem algumas letras que são iguais às nossas, mas não

se significam o mesmo.

Isso era complicado, porque tinhas que aprender outra vez como na escola primária a desenhar,

depois já não confundir, depois já não trocar ves pelos ves, porque são becadobras.

Como é que fazias o equilíbrio entre o pensamento próprio, aquilo que vias, e a ideologia do

partido?

Sendo fiel a ambos?

Nós nos primeiros tempos, e quando somos dobles, nós temos um poder de encaixe muito grande.

Somos estudantes, a gente não pensa muito bem nessas coisas, até porque nós não entramos

muito em contacto com aquele tipo de realidade da vida, principalmente na província, porque

nós não podíamos sermos covos sem autorização.

Para ir a qualquer cidade, tínhamos que poder uma autorização prescrita.

Claro que praticamente toda a gente violava a regra, porque não te dava uma autorização.

Nós vivíamos num prédio de 22 andares, onde vivia a gente praticamente todo mundo com

a raça e inclusive a sobiéticos.

Isto para nós inicialmente era um choque, mas depois é uma curiosidade.

Tu ves, por exemplo, as estudam contigo guerrilheiros da guerra do Vietnam, e nós, claro, que

perguntávamos como é que foi, tínhamos curiosidade.

Com os Vietnamitas nós tínhamos um problema, aqueles gostavam muito de fritar a rinca salgada.

Aquilo era um cheiro, é uma coisa terrível, tenebrosa, e nós não os conseguíamos convencer

a deixar o pitel deles.

Já quando eram as ucranianas a fritar batatas, elas eram boas nisso.

As ucranianas ou as batatas?

As batatas primeiro.

Era um ambiente fantástico, e ainda nesse ambiente tu começas a perceber o antissimitismo.

Para mim era uma novidade, um gay que isso não existisse, e eu tinha colegas judeus e

alguns que me contavam as dificuldades que era ingressar numa universidade sendo judeu.

Eram estas coisas que começavam a colocar-nos interrogações.

Depois nós vimos que a final amizade entre os povos, dentro da União Soviética, não

era bem aquilo que se falava, que havia ali problemas escondidos, reprimidos, mas poderiam

vir até de cima a qualquer momento e acabou por acontecer.

E depois à medida que vou vendo que a realidade não coincide com a ideologia, acabamos colocando

as questões.

Houve um período, por exemplo, quando Garbachoff chegou ao poder, em que eu ainda queria

acreditar naquilo, porque é difícil deixar de acreditar, e eu queria que fosse possível

criar um socialismo de rosto humano, mas quando começaram a ser rebuladas as situações

reais que existia no país, rapidamente se entendeu que aquilo não tinha pota para

onde se pegar.

Incendo do ateu, tendo perdido a fé no comunismo, crezem que é hoje.

Eu gostaria muito de acreditar em Deus, mas é muito difícil.

Por exemplo, o que está hoje a acontecer na Ucrânia, será que Deus pode tolerar esta

loucura dos humanos?

E isto aqui, a mim, faz-me ter dúvidas.

E além disso, eu agora estou muito mais precavido contra ideais absolutos.

Tenho dúvidas sérias em relação a praticamente todos os regimes, mas aqui há uma coisa que

é verdade, há determinados momentos em que eu tenho uma posição clara, se me diga

democracia ditadura, e eu digo democracia, porque eu vivia em duas ditaduras, e vivia

em democracia, e mesmo na nossa imperfeita democracia, é muito melhor viver do que viver

em regimes ditatoriais, coisas como essas eu não tenho a mínima dúvida.

Também não tenho dúvida que Portugal é um país maravilhoso, mas muito maltratado

por nós.

Agora, certezas, e eu receio essas certezas, são muito séticos.

E paga-se um preço por ser dissidente da ideologia?

Claro que sim, até porque nós é uma determinada ideologia que não poupa os dissidentes.

É uma ideologia totalitária, e em que é uma espécie de erasia que nós estamos a

fazer.

Na Idade Média havia inquisição, hoje não há, há outra coisa, que é um partido político

que quer fazer banir, quer te destruir a vida, lançando calúnias, fazendo críticas

absurdamente absurdas, infundadas, é que eu já não presto atenção porque eu tomo

nestintas, e não é por que agora mostarem a lembrar que o Cuspino, o Prato de Sopa,

que foi os sobiéticos, deram os estudos na Rússia, e eu agora não tenho direito de

criticá-los, ou de pensar pela própria cabeça.

É um absurdo.

E é até porque eu trabalhei muitos anos na Rússia e paguei impostos, por isso.

E ao meu curso superior, deu-te a pago várias vezes.

Você escreves-te num dos teus livros que estás à espera de encontrar as contas bancárias

para ter um transferido do dinheiro de seres humanos.

É que eu trabalho para tantos serviços secretos, que eu devo estar rico, porque hora

é para o Vaticano, hora é para Estados Unidos, hora é para o KGB, hora é a S.L.A.

País Real, ou seja, sem trabalho eu não estou, eu não sei onde é que há tempo para trabalhar

para tanta gente ao mesmo tempo, são aquelas acusações mesquinhas que não têm grande

sentido.

Por exemplo, aquela do meu último livro em que me vieram acusar de eu estar a ganhar

dinheiro com a guerra.

O que é que eu posso responder?

É uma crítica destas, como se eu ou tivesse escrito o livro em meia-doze dias, o que

não é verdade, porque eu editei o livro dez dias antes de começar a guerra, e por

isso eu respondo-lhes e eu combinei com o Putin escrever o livro e ele depois começava

a guerra.

Pronto, vamos dividir o dinheiro a meias e está completamente esclarecido, o porque

ninguém pensa que, por exemplo, este livro pode ter sido escrito e foi antes da pandemia,

ou melhor, no início da pandemia.

E não foi publicado pelas razões de toda a gente sabe, não é porque eu estava à

espera de uma guerra.

Eu até era daqueles que achava que o Putin não era idiota ao ponto de invadir a Ucrânia,

por isso não estava a pensar como o livro iria ter a saída que tem.

Mas isto só para ver as calúnias baixas que às vezes se utilizam para denagrir as

pessoas e para insultar, tanto mais que agora com as redes sociais, isto é uma fatorinha.

O dia de 30 de novembro de 1982 foi um dos mais especiais da tua vida quando nasça

tua filha.

Claro que foi, é uma alegria extrema, eu quis ir visitá-la, tinha que ter autorização

porque ela nasceu na outra cidade, nasceu em Tallinn, na capital da Estónica e não

me queriam deixar lá ir e eu tive que fazer barulho ao Ministério da Educação.

E o funcionário que lá estava com uma grande late diz-me que como nós não estávamos

casados, que eu tinha que fazer uma carta de PCP e dizer que ela que era minha filha.

E eu virei-me para o homem e disser-lhe, você quer ter problemas, você quer que eu vá

perguntar ao PCP se o PCP serviu de colchão, vai haver problemas porque eu sabia que

o PCP tinha que ir reagir de forma mais ou menos normal, uma estupidez daquela e o homem

lá se deu, deu-me um fim de semana para lá ir e eu fiquei lá 15 dias.

Tu e tua mulher casaram-se num quarto estudantil?

Se vivíamos num quarto estudantil, casámos lá, casámos no palácio dos casamentos número

1, eram-se casávamos os trejeiros e mais alguns privilegiados de orquestra e tudo, nós

não tivemos orquestra porque não havia dinheiro para pagar, o único dinheiro que tínhamos

foi o dinheiro que o Estado soviético criou à minha mulher para comprar a aliança, mas

como eu também não tinha aliança, não fazia sentido.

Era o Estado que pagava aliança?

O Estado dava-se em rumos para mais ou menos dava para comprar aliança e então nós pegámos

nesse dinheiro e fizemos a festa, convidámos poucos amigos e no nosso quarto na residência

fizemos a festa de casamento.

De um filho, nós chegamos em 85?

De 85, sim.

Não, nem em soviética, não se pode entrar nas maternidades, ir ver os filhos, só podes

falar que a tua mulher pela janela, se ela está lá em cima grita e dá como é que está

a criancinha, não sei o que, que a criancinha está separada, está no outro lugar, onde

o pai não vai, só depois aquele apareceu um rapaz com uma cara vermelha e com uma mancha

com uma garba de chofe, foi uma alegria, tem um grande orgulho neles, que são pessoas,

trabalham muito e já me deram netos, o que é também maravilhoso.

O que é que sentes que eles mudaram na tua vida, a chegada deles?

Por um lado, eu era um pai que prestava pouco atenção aos filhos, que passava a vida a

traduzir e a escrever, a máquina ia fumar e então os putos só incomodavam, andavam

lá à volta e depois nós vivíamos numa casa, a minha frente vivia uma francesa, tinham

um miúdo, depois de outro, polacos, depois de outro, indus, pakistaneses, ingleses, americano,

as crianças juntavam-se todas e aquilo era um vendaval, que andavam sempre a correr

do lado para o outro, de uma casa para o outro e eu acho que não procede a devido a atenção

aos meus filhos e depois quando veio o jornalismo então isso era uma desgracia, não havia

tempo para nada.

E creias que isso já está apaziguado neles?

Acho que sim, às vezes a tiram uma farpa mas muito pequeninha, a mais pé é irritar

do que qualquer coisa, eu acho que eles compreenderam porque eles também viviam e viviam a situação,

eles sabiam tanto de política como qualquer política para terminar a altura, porque só

ouviam para comentários do pai na rádio, vinham lá a casa para falar de política,

reformas, mucratização, garamachofa e não sei quando, as crianças viviam naquele mundo

e depois também aquelas coisas de começarem a ver, desenhos animados ocidentais, tal anubelas

brasileiras, eu lembro-me da escraveis aura foi a primeira que passou e era absolutamente

incrível porque aquilo teve um êxito terrível, não é sabiética, tanto é que chamada da

chacá que é a casa de campo, muita da gente passou a chamar fazenda, mas há uma coisa

muito curiosa é que os russos dobram todos os filmes com os espanhais, só que naquela

altura como havia pouco dinheiro era um ator a dobrar as bosses todas e era uma confusão,

Leoncio e Zaura era terrível, os desenhos animados é a mesma coisa e estas coisas claro

que nas crianças também marcavam, começavam a ver novas coisas e depois também era mais

fácil já vir a Portugal, a mãe já não tinha que passar o suplício de interrogatórios

durante três meses para receber o passaporte e fazer exames de histórias do Partido Comunista

Português, para chegar aqui e esses comunistas começassem a falar com ela, ela soubesse

responder às perguntas de forma que os comunistas ficassem surpreendidos, que incrível, embora

a minha mulher fosse anticomplista, mas lá aprendeu, aprendeu.

O salário chegava muitas vezes, mas não havia produtos, não é?

Sim, quando era tradutório como trabalhava à peça e eu tinha um bom salário, o problema

era o que comprar com isso, havia uma grande falta de produtos e às vezes era preciso

inventar um bocado, mas, quer dizer, nós já dávamos no desenrasque com todos os cidadãos

sobiéticos, não havia fraldas, por exemplo, nem havia coecas de plástico para meter por

cima das fraldas.

O Pano era uma amiga nossa que nos trazia da Finlândia e que era uma que eram descartáveis,

mas a gente não descartava, a gente lavava até Isaústama, a minha mulher nesse sentido

é muito criativa e isso ajuda às pessoas a desenrascar-se em qualquer situação.

Havia lá um tempo em que os Estados Unidos mandavam para lá ajuda humanitária que

eram as coxas de frango enormes e então aquilo passou a ser chamado as coxas de luxo.

Por exemplo, havia outra coisa que os russos não gostavam de lulas, as lulas eram pós-gatos

e claro que a gente aproveitava essas coisas porque para nós era muito bom.

Um dia até compraram-te um quarto de vitela, não foi?

Ah, comprei, comprei e depois tive que arranjar a forma de acerrar e partir no meio da cozinha.

Porque era metade de uma vaca.

Era metade de uma vaca porque naquela altura as unidades coletivas estavam todas afechadas

e os campeonatos começavam a vender o gado.

Então vieram-me por pôr a mim e aos vizinhos compraram meia vaca e eu não fazia ideia

o comprimento da meia vaca ou da meia vitela.

Certo é que quando trouxeram para a cozinha, a cozinha ficou cheia, depois lá veio meu vizinho

judeu com um serrote e um machado dar cabo da vaca porque tivemos que distribuir pelos

nossos vizinhos porque aquilo não cabia tudo no frigorífico e não era inverno.

Se fosse inverno nós metíamos na janela ou na varanda com o gelo, é como se tivesse

no frigorífico.

Quando éramos estudantes não tínhamos frigorífico no quarto e fazíamos isso.

Pegávamos na carne, na vode, o que queríamos tornar mais fresco, amarrávamos, metíamos

à janela, tudo isso aí são lições.

Tence-nos um dia lá a voltar.

Olha, uma boa pergunta, sem poutino e sem poutinismo.

Enquanto poutino tiver no poder primeiro não me devem dar visto, esta não é a Rússia

que eu conheço.

Trinta e oito anos na Rússia e na União Soviética, foi o tempo de mais?

Claro, claro.

Eu estou arrependido, é porque destreino há trinta e oito anos quando Santos acabou

de beber mais, e a dezoito quando foi poutino essa biética, mais trinta e oito, o pai não

bebeu nem mais trinta e oito e nem se se bebeu mais dezoito.

E aí os meus filhos, como eles vieram antes para Portugal, perderam muito da comunicação.

E aí ele saia razão, porque o pai deixou-se levar pelo jornalismo e também debo reconhecer

que tinha medo de regressar, porque eu doutorei minha história e eu cheguei a Portugal e

já tinha alguma ilusão em poder dar aulas numa universidade.

Já tinha equivalência, já me tinha doutorado na universidade de Porto, não sei, ou eu

não era competente, ou as nossas universidades são muito bem servidas, não foi fácil,

não foi fácil porque chegas a um país muito pequeno e onde o corporativismo e o capelismo

é uma coisa absolutamente diabólica.

Em que momentos querias ter estado cá e não os tiveste nesses trinta e oito anos?

Quando morreram os meus abos, por exemplo, depois quando era o aniversário dos meus

filhos ou da minha mulher, a única coisa que eu estava religiosamente aqui era no Natal.

A única vez que não tive no Natal, levei a minha mulher para o Natal, para a Ucrânia,

para a Revolução.

Eu quis deixar ficar sozinha aqui em 2004.

Nos comentários, o que é que tem por tanto de passar?

Os comentários têm um problema, é o problema das emoções, principalmente em determinadas

situações.

Sabe o que é que eles são a dizer?

A guerra é que vai para o c***.

Não é o que eles estão a dizer, eu só estou a traduzir.

Quando começas a ver imagens de bombardeamentos, mortes de crianças, de mulheres, ficas

completamente indignado.

E é esfriamente pessimista com o que está a passar e com o desfeio?

Muito pessimista, Daniel.

Isto é tenebroso, é terrível, porque a Rússia está nas mãos de pessoas que eu duvido

que a sanidade mental seja normal.

E um poveiro das caixinas é pressionável?

Não, não, para mim não isso não dá.

Já tivesse alguma vez algum susto?

Eu não preste atenção nessas coisas, mas às vezes quando fazem umas ameaças nas redes

sociais, mas isso não é que eu seja um herói e não tenha medo de nada, mas as redes sociais

é um lugar onde qualquer cubarde pode expor a suas posições.

E espero que seja só isso.

Não me sinto ameaçado nem intimidado.

O que é que tens medo?

Olha, eu tenho medo do futuro dos meus filhos e dos meus netos.

Aquele mundo em que eu vivi, durante a maior parte da minha vida, era um mundo com alguma

estabilidade, ou até com muita estabilidade.

Esse mundo acabou, tudo está a mudar e para o ano de nós não sabemos.

Eu tenho receitos paranóicos que chegam ao poder e da forma como possam utilizar esse

poder.

Claro que eu não quero acreditar no pior, mas é muito difícil adivinhar o que nos

vai acontecer.

Mas que vamos passar por momentos difíceis, de reforma completa das relações internacionais

e até da nossa vida, e nós temos que estar preparados para isso, esquecer que a vida

que nós tivamos até dia 23 de fevereiro acabou.

Acabou, aquela vida já não volta, porque essa guerra veio mexer com tudo, com tudo

e com todos, porque este mundo está tão interligado que, faltando o trigo ou os cereais

da Ucrânia, há zonas de mundo que vão passar a forma, e há outras que não poderão comer

croissants todos os dias.

Eu espero que apareçam políticos capazes de saber darem esta volta.

O que é que as pessoas te dizem na rua?

O senhor Milhas, continue, o seu trabalho é interessante, nós entendemos a sua linguagem

e você lá com o Nuno Rujeiro está fazendo um grande trabalho, nós não perdemos todos

os dias, os vossos comentários.

A quem lamenta falta da barba ou não?

Isso há sempre, magista.

Aí há uns que gostam de barba, outros que não gostam, sabe que eu detestava cortar

a barba, por isso eu acho que eu tenho barba de 18 anos desde que ela começou a aparecer.

É imagem de marca?

Quer dizer, não é imagem de marca, aqui é uma certa imagem de preguiça.

Alguém te deve um pedido de desculpas?

Não sei, eu diabo um e já fiz, através da Sica.

Foi o engenheiro António Guterres que critiquei muito a ida dele a Moscou e de forma até

muito dura, mas o facto de algumas centenas de pessoas terem sido libertadas em Mariúpol

graças às Nações Unidas, levam-me a pedilho de desculpa, porque mesmo o que tivesse sido

só uma pessoa salva, já valia a pena ter ida a Moscou.

O que é que dirias àquele jovem rapaz, filho de pescador, que neste dia 9 de setembro

está a deixar a sua terra para ir para um sítio longingo?

Isso é muito complicado, e eu iria outra vez, e eu faria outra vez a mesma experiência.

Davas-lhe que consenho?

Tivesse juízo, pensar-se pela própria cabeça e que olhasse com atenção para todos os lados

e que tivesse um grande poder de encaixe e de resistência, que isso é fundamental

quando se vai para uma civilização completamente diferente.

O que é que dizem estes olhos?

Queria que os meus olhos não vissem aquilo que se está hoje a passar no mundo.

Daria tudo para que não estivéssemos a ver aquela maldita guerra, porque além de ser

uma desgraça total, para mim ainda doem mais porque eu tenho amigos russos, felizmente

são todos antiputis, tenho amigos ucranianos que podem não sobreviver à guerra.

Família da minha mulher vive num país que faz fronteira com a Rússia, que é a Estonia.

Por isso, os meus olhos refletem alguma coisa para a ocupação, muita.

richtig, muito obrigado por ser comozenia a vocês.

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José Milhazes vem da aldeia piscatória de Caxinas, na Póvoa de Varzim, e cresceu a ouvir que "filho de burro não pode ser cavalo". Da infância, onde acabar no mar, como o pai e o irmão, parecia uma fatalidade, conseguiu trazer o que de melhor encontrou. Estudou para ser padre, mas desistiu do seminário e alistou-se no Partido Comunista Português. Ainda jovem, foi para a União Soviética à procura da sociedade ideal, mas não a encontrou. Sobre esses tempos, diz que não fica chateado se lhes chamarem cegueira ideológica. "Não tenho problema em reconhecer que estou errado. Fico surpreendido com aquelas pessoas que já têm ideias acabadas para toda a vida". José Milhazes, numa grande entrevista de vida com Daniel Oliveira

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