Alta Definição: Fátima Campos Ferreira: “É importante dar um abraço a alguém que perde um familiar”

Joana Beleza Joana Beleza 4/2/23 - Episode Page - 49m - PDF Transcript

Bem-vinda, Fátima.

Olá.

No livro que acaba de lançar.

Vai nos tratar por tu, que é mais importante.

Eu não sei se consigo.

Conceito.

Vou tentar.

Conceito.

No livro, falas do pedido que a tua mãe faz de dígiles quem fome.

Quem é Fátima?

Hoje.

Sou a filha amada do Luís e da Virgínia, é assim que eu me vejo só isso.

E então achar muita graça porque tem pequena.

Eu sei que estive aqui, neste espaço, porque esta livraria fazia parte dos roteiros, que

o meu pai percorria àqueles boas nos alfarrabistas, porque o meu pai meteu a nariz em tudo o que

fosse prateleiras cheias de livros.

Começávamos de manhã às 9h, eu ficava ali parada à espera, às vezes me dava um

livrinho pequenino, por exemplo, de um quichote la mancha para crianças.

E eu ficava ali encostada no sítio a ler e entretida e acabo de receber uma notícia

de última hora.

Fátima Camposferreira, estou como sou, no alta definição.

Não vimos aqui resolver todos os problemas, mas queremos levantar os mais relevantes.

No prefácio do livro, o general Ramalhães fala da razão pela qual a Fátima é quem

é e como é, tem a ver com ter sido tão amada.

É provável que sim, sabes que o amor é a força matriz essencial, mas também matriz

que move a vida.

Isso dá-nos uma força gigante, não é, porque somos humanos e precisámos dessa ternura

desse carinho para prosseguir viagem, mesmo até a eternidade.

E cita Fátima quando diz que esse amor de olho é a capacidade de não ter a necessidade

nem de se sobrevalorizar, nem de se substimar.

Sempre tive uma noção muito relativa de tudo, de relativizar tudo.

Eu aprendi-se com os meus pais, especialmente com o meu pai.

Era uma pessoa, punha tudo em perspectiva, tudo é muito importante, mas ao mesmo tempo

tudo tem os seus queres.

Ele tinha uma expressão muito engraçada.

A vida é uma acolhida de bicicletas, nunca queres ser o primeiro, que se tá muito trabalho,

tem muita pressão, muita competição, nem sempre resulta, mas nunca queres ser os últimos.

Eu penso que ele tinha razão, essa pressão da competição é escravel.

Não nos deixa viver, não nos deixa sequer amar, não nos dá espaço nem tempo.

E, sobretudo, aquilo que me reja a mim própria, que trouxe talvez de meu pai inconscientemente,

que é uma espécie de consciência, parece que tem um grilo falando-te dentro de mim.

E é isso que me move, é a minha consciência.

Neste livro permitiu-se conhecer-se também assim melhor, uma vez que foi conhecer melhor

e esmiossar melhor os seus anos passados.

É muito doloroso, porque eu faço este livro com a vontade de fazer o luto da minha mãe.

Minha mãe morreu com o Parkinson no último estadio, mas me lucidou.

E isso foi uma coisa muito difícil de assistir, é qualquer coisa de muito assustador.

E eu tive tal vez por isso muita dificuldade em fazer o luto, ela já morreu em 2017.

E está muito viva dentro de mim, e sempre que eu tenho que fazer este exercício de pensar

ou escrever, ou até rever agora o livro, isto é uma ferida que eu tenho dentro de mim.

É muito difícil, eu sofro com isso, porque não estou ainda habilitada a ler e com o sorriso só.

Tenho aqui marcas profundas, e penso que tenho a ver muito com essa doença da minha mãe,

e mesmo tendo eu feito, enfim, tudo o que pude, mas reconheço que o grande objetivo do livro

é fazer o luto.

E escrever também para os seus netos, deixaram-me destuminho.

Ela costumava dizer, se não lhes disseres quem fomos, eles vão nos perder o asto.

E puxavam assim o braço, e diziam, tu não te esqueças, dizem-lhes quem fomos.

E eu, estava em mamãe, mas dizia sempre, obviamente muito emocionada, porque percebia

que era um pedido da terminalidade, da finitude.

E os meus pais morreram com 15 dias de diferença, vê lá.

O meu pai já estava muito mal, mas não suportou a partida dela.

Aliás, sempre disse, nunca me digam a palavra.

A palavra era que ela tinha morrido.

Mas ele sabia, para eu não sei dizer, ele percebeu que ela tinha morrido.

Portanto, digamos, que esse conjunto de situações e de despedidas, isso fez com que,

mas esse é-se dentro de mim essa vontade de escrever.

E dizer, finalmente, aos netos e aos vindores, que aí foram.

Donde vieram aquelas famílias que me deram vida a mim e ao meu irmão.

E depois eu dei-me conta que eles foram em bais, a quase todos os outros.

Nós partilhamos quase toda a mesma história, com nuances, mas não somos assim tão diferentes.

Somos humanos.

Descobri-te coisas novas sobre ti.

Descobri que fui sempre uma pessoa reflexiva.

Aliás, a fotografia que está na capa de reparar-se, eu tenho 11 anos.

E tenho um olhar de quem está à procura de qualquer coisa.

Acho que fui sempre essa pessoa.

Sou pessoa de procurar sempre mais.

E, sobretudo, sou muito inquieta, com muita vontade de perceber o que é que estamos aqui a fazer.

Quem é o homem, a mulher, quem somos os habitantes deste planeta.

Sou interessada no mistério da vida.

Se fechar os olhos ainda de centros hoje no carro-cel.

Permanentemente.

Eu vou sempre agarrar as coisas de virada, convento as armas de frente.

E como eles quer ir nos voltem, essa coragem.

E se souber um carro-cel numa feira, eu entro logo.

E procurar girar-se.

Quais são as memórias mais vividas da infância?

São de facto os pais, porque eu vivi em um sítio que era pequeno à altura.

Era uma vila, hoje, uma cidade de Valência do Minho.

E vivi muito junto da Galiza, da Espanha.

A alegria dos dias era pensar que íamos a Espanha.

Eu aprendi a falar espanhol de pequena, tínhamos amigos espanhóis.

Depois vinha sempre a Lisboa, também, um mês por ano.

E aí era outras descobertas, o cinema, as grandes lojas, as avenidas.

Já havia método nos anos 60.

E isso são as memórias felizes, bem como as brincadeiras com as amiguinhas.

As pessoas que me rodearam, as minhas madrinhas.

Tudo esse ambiente que me rodeou em Valência do Minho,

que era uma terra pacata e não pouca acontecia.

Nesse tempo era muito pouco comum que houvesse espaço para pais e filhos

terem manifestações de afeto calorosas.

Percebe-se no livro que esse amor esteve sempre muito presente.

Tanto do meu pai como da minha mãe. O meu pai era uma pessoa terna com os filhos.

Não era de muitas falas, nem de dadivas.

Não era nada, presentes nada.

Se não via que o meu pai era muito papá e o que eu estava era para os livros.

Mas era de nos sentar no colo, de vermos as estrelas, de contar histórias,

de ir dar o beijo na cama quando chegava do trabalho muito tarde.

E a minha mãe também.

A minha mãe tinha outra forma de gostar.

Estava de nos vestir bem e depois de olhar para nós

para ver se estábamos bem enquadrados, bem postes.

Sobre todo quando vínhamos a Lisboa e vínhamos visitar a família,

ela tinha sempre o cuidado de nos arranjar bem os cabelos e de ver como é que estábamos.

Tinha outra forma de nos dizer que nos amava, que nós éramos dela.

Eram diferentes, mas amamos com muito amor.

As grandes confidantes eram a Cristininha e a Luizinha?

Eram as bonequinhas.

A Cristininha morreu.

Porque o meu irmão posou em cima de um calorífero.

Depois, naquela parte junto ao gajo, onde estava mais quente à frente,

ela derreteu-lhe a cabeça do cabelo.

Quando dêmos pelo cheiro, eu na grita e gritei,

mas ninguém quis saber que a Cristininha morreu.

A mãe face que aprende também a desembarassar-se?

Tinha de fazer desde logo um percurso de longo apete ao colégio,

onde andava, logo de manhã, muito cedo, debaixo de ventarias, de chuvas.

O vento que rejuveneste e acorde, não é?

Eu me lembro de andar um bom pedaço a pé, às vezes, como as vantanhas mudonhas.

A logo às 7 e meia da manhã.

Até me lembro da minha mãe ter muita pena nossa, de sair de casa,

de ver que eu tinha aqui debaixo daquele vento e daquela chuva,

ou daquela água, toda a pé para o colégio, que ainda era um bom pedaço.

Isso talvez me nos dê uma razão de independência, de autonomia

e de noção de necessidade de ir para a frente.

E de responsabilidade. Fui sempre muito responsável.

O que é que era feita a alegria?

Os anavas, de pequenos anavas, podia ser da fruta da época, das ameixas,

quando eram boas, gordas e doces.

Das músicas, as músicas espanholas, que sempre me fascinaram.

Me lembro de crescer já, também, com a música dos Juli Iglesias

e das verbenas, do jardim, das festas.

Não tive uma adolescência de discotecas ou de cedas à noite.

Isso não me foi permitido até depois de casarmos cedo, com 19 anos.

E eu nem sabia o que isso era.

O pai era do gosto pela observação?

É, meu pai era muito observador.

E dizíamos sempre, tens que ver aquilo que não está à vista.

E isso eu aprendi muito com ele, bem como o gosto pelos livros,

o gosto de procurar no passado.

Para meu pai, tudo tinha importância se tivesse uso.

Uma coisa lusasa tinha mais importância como coisa nova.

Para ele, tudo tinha importância.

Porque ele fazia-me sempre se transportar para quem tivesse usado,

para quem tivesse sido o autor ou o uso frutuário daquela peça.

E depois, esse passado ajudou-me sempre a perspectivar e a perceber

que o futuro era feito com essa carga sempre que trazia-me atrás.

E isso eu penso que é uma coisa que está hoje muito vulnerabilizada.

Tenho pena disso, porque o passado é uma marca que nos faz falta

para alavancar o futuro.

O que se encontra quando se olha para as coisas como a Fátima faz

e se tenta ver aquilo que não está à vista?

Eu acho que se encontrarem sempre o mesmo,

pelo menos é aquilo que eu procuro.

Eu quero saber mais de todos nós, porque estamos aqui, neste planeta.

Estamos aqui há milhões de anos, temos feito uma enorme viagem,

mas sabemos pouco de onde vimos e para onde vamos, não sabemos quase nada.

O mistério continua igual.

Me interessa-me saber o que está no outro.

Gostamos de perguntar aos teus espectadores o que é que dizem os teus olhos.

É isso que me interessa mesmo.

É o que é que tu tens nos olhos, porque para mim o infinito são os teus olhos.

É o outro. Nós não sabemos mais nada.

O resto é fé, alguma ciência.

Estamos muito longe de ter certeza seja do que for.

E a mim interessa-me que todos percebam isto

para que em rede nos possamos entre ajudar.

Eu sei que a crueldade faz parte do balanço da existência

e infelizmente ela está dentro da natureza humana.

Mas eu gostava e peço que a bondade acaba sempre por vingar.

Eu quero isso, sonhei com isso desde pequena.

Talvez também tenha sido alguma coisa que me veio não só da ternura dos meus pais,

mas também do colégio onde andei e das coisas que diziam.

Eu acredito que a ternura acaba por vingar.

A fé para si explica algumas das nossas circunstâncias?

Talvez sim e talvez não.

Eu acho que é feliz quem tem fé porque tenho uma parte do problema resolvido.

São coisas muito intimistas, muito pessoais.

Todos nós temos uma parte crente dentro de nós.

Às vezes nem sabemos.

Basta sermos desafiados num momento e vamos descobri-la.

Mas mesmo que não atinhamos, temos que pensar no que temos e o que é que nós temos?

É o outro.

O mistério da vida é o outro.

É porque estamos aqui, porque só nós temos uns aos outros.

E o mundo que cada um de nós é e, no caso, o mundo que a Fátima é,

ainda apresenta surpresas para si mesma?

Muitas. Todos os dias temos surpresas.

Nós estamos, eu penso que em constante evolução, eu própria estou agora entrando numa outra etapa da minha vida.

Não sei o que é e bem.

Vou envelhecer o resto da minha vida, não é?

Não é que eu temo envelhecimento, mas sei que é uma fase difícil, mais difícil ainda.

Talvez eu até não tenha preparado a vida inteira para ela.

De que forma?

Sempre tive autoestima naquilo que tenho a noção de mim, do que eu sou capaz, do que eu sei fazer, do que eu posso fazer.

Mas nunca levantei os pés do chão como se costuma dizer.

Nunca acreditei de mais em mim, sempre mexei um entre todos.

A maneira que eu talvez sinta neste momento, que vou estar nesse todo que faz os mais velhos.

Procurando que o melhor ainda esteja para vir ou com a consciência de que provavelmente não será assim?

Seja o que Deus quiser, mas quem sabe o segundo nós está para vir?

Por acaso tem que ser uma vezada. Nunca se sabe.

O aconchego que falou do seu pai, ainda é uma sensação que hoje paira?

É, não há dúvida que é essa amor, essa tornora que me faz acreditar.

Eu sei que os meus pais me amam.

Onde estiverem, eu sei que essa energia que corresponde aos meus pais está onde estiver.

Amar-me, quem não me diz que essa energia não a vamos reencontrar há algum dia, de alguma forma?

E eu sinto essa amor, eu tento transmiti-lo.

Os meus pais tinham uma coisa muito engraçada, sobretudo a minha mãe.

Diz-lhes que eu vou gostar deles, mesmo sem os conhecer.

Não era preciso conhecer os que viessem, vou gostar sempre deles.

Gostavam de falar nos amigos, no que já não viu há muito tempo.

Pessoas que tinham perdido de vista, pelas etapas da vida,

pareceu-me sempre que eles gostaram de todos, daqueles que os acompanharam, daqueles que ficaram para trás

e daqueles que eles não conheciam, nem vão conhecer nunca.

A Fátima descreve o momento em que estava a despedir do seu pai

e a necessidade que teve de dizer, Fátima está aqui.

É, meu pai e a minha mãe chamavam-me Fátima.

E eu estive com o meu pai nas últimas horas,

e ele morreu nessa noite e eu estive até ao fim do dia com ele.

Eu sabia que ele estava a fazer o processo de agonia,

e a ter na altura eu fui falando com ele o que podia ou ouvido,

dizendo o que estava ali e dizendo o que me apreciou dizer naquele momento.

Eu percebia o assentimento dele, que percebia tudo o que eu dizia,

e ele disse-me duas vezes em voz assumida,

vai-te embora, vai-te embora.

Como quem?

Não fique-se aqui até ao fim.

Isto é maiores de nervosidade que se pode ter para com um filho.

Não queria que eu estivesse ali até ao fim.

Ele sabia o que estava a acontecer

e não teve esse discernimento de pedir que ele me afastasse.

Só mais tarde é que eu percebia que ele vai-te embora.

E ele sabia.

Fátima fez questão de dizer que ele tinha cumprido a sua missão.

Muito, muito.

Que tinha cumprido a sua missão e que todos o amávamos,

disse-lhe aquilo que era o normal.

E quando saiu da sala, quando ele pediu para sair,

e Fátima, apesar de ter dito, vou estar sempre aqui consigo,

e quando saiu, é uma dorimento.

É, porque eu tive a noção que provavelmente não voltou a ver.

E como eu não voltei, acordei às 7h da manhã com a notícia

que o papá morreu.

E tu já sabes o que é assim, mas é como se não soubesse.

Aquele instante, aquele choque, é tremendo.

Aqueles dias ficamos desorbitados.

Vivemos uma espécie de órbita, andamos sempre a pensar,

estamos muito equilibrados, muito orientados,

e de repente desorbitamos.

Ficamos fora de nós, já não sabemos qual é o caminho,

qual é a nossa orientação.

É isso que é o luto.

Mas é preciso se fazer, é o caminho.

O Medido do Funeral há um momento que é pura poesia

que descreve no livro, que é a Idá Biblioteca,

que é muito, bastante impressionante.

É, saiu da minha cabeça.

O meu pai não ia a casa há bastante tempo,

foi incapacidade, e eu e só o meu irmão gostava

de o trazer a casa.

Já morto.

E assim foi.

O carro foi noborando-se de pai, que já parou em casa,

e eu e o meu irmão estivemos com ele no escritório,

o caixa é o aberto.

E eu posto nos livros que eu achei que ele ia gostar mais,

que era um livro de Camilo, a maior doura humana,

e um pequeno livro do cancioneiro Galego,

da Rosalia de Castro, que era poesia Galega,

que meu pai adorava, e ali ficamos uns instantes largos,

no meio de uma meia hora, até nos virem chamar,

porque achamos que aquilo fazia parte, não só da partida dele,

mas também do nosso próprio luto,

porque o nosso pai viveu para nós, sim, para a minha mãe,

mas para os livros.

Então, guardamos essa meia hora para ele voltar aos seus livros.

Isso apasigua também o vosso coração de filho,

tanto quanto é possível.

Talvez sim, tanto quanto é possível.

Talvez por todas essas razões,

eu fiz muito melhor ao luto do meu pai que da minha mãe.

E aqueles palitos com o vinho do Porto sabiam bem?

Sabiam, mas era um horror, porque eu tinha...

nem três anos de meu pai.

Ele pinhou um palito, molhava o vinho do Porto e dava-me,

eram outros tempos, outras épocas, eu gostava.

E da mãe, que sensações é que os bordados hoje lhe trazem?

Viveram em comigo.

Ainda hoje, ao almoço, tive uma toalhinha abordada.

Na minha mesa, eu faço questão de os usar.

Sou outro trabalho que ela fez,

não só por anjoval dela, e depois fez para o meu.

Tudo isso, eu vivei em comigo.

Eu dou muito valor aos trabalhos humanais,

porque, mas não o sei fazer.

Ela sabia, era uma profissionista, e eu dou-lhes muito valor.

Agarre meses panos como se tivesse alma?

Sim.

E quando nos desfizemos a casa,

havia caixas e caixas de linhas de crochet.

Como eu não dizia isso? Não.

Eu queria que aquelas caixas eram para mim vida,

porque eram daquelas novelas que saiam os trabalhos.

Eram a essência dela.

Eram coisas da minha mãe.

As agendas femininas da minha mãe.

Minha mãe tinha resmas das agendas femininas todos os anos,

comprava uma onde punha tudo,

debo haver o que tinha comprado, a despesa.

Ela notava tudo, era muito organizada,

sendo que o que era gasto tinha uma estratégia,

servir a casa, servir os filhos,

servir primeiro aquilo que era prioritário.

Sempre teve uma predição pela sua mãe, escrava.

Eu era muito parecida com ela, fisicamente, dizem.

A minha mãe era muito discreta,

era uma pessoa que falava pouco, pensava muito,

e eu fiquei sempre com a impressão

que talvez pudesse ter conversado mais,

embora nos últimos anos tínhamos conversado mais.

Mas quando somos adolescentes e novos,

temos que ir para a frente, e eu também tive que ir para a frente.

As mulheres da minha geração sabem o quanto tivemos que esbrasejar,

para ser independentes.

E a minha mãe não.

A minha mãe, coitada, ela trabalhou um ano aqui,

em Lisboa, ainda antes de casar, mas depois deixou o seu trabalho,

viviu para nós.

Eu penso que isso formatou, de alguma forma,

era uma mulher muito atenta, muito inteligente,

muito interessada desde logo por política.

Mas faltou ali esse lado da independência, não é?

É muito independente, como se foi meu caso,

foi necessário muitas vezes não ter tantas conversas

que ela teve com a mãe dela, ou estar tão próximo.

Eu vivi muito para o trabalho,

e eu puse o trabalho à frente de tudo,

porque sabia que queria sobreviver a dela.

Teria feito diferente hoje?

Não.

Não.

Eu queria ser independente.

O Ministério da Saúde está a desenvolver grandes esforços

para aumentar os enfermeiros qualificados.

Não foi uma surpresa para os seus pais,

a mulher é a profissional em que se tornou.

Mas meus pais relativitaram sempre tudo,

nunca comentaram que bom, que bem, que nada.

Pelo contrário, deixaram-me ir.

Pense até com alguma primeira estranheza

e depois com alguma medo,

porque sabiam que era um mundo complicado,

um mundo da televisão.

Mas havia uma noção de responsabilidade

que eles sabiam que eu tinha.

É claro que haverá momentos em que eles,

ao longe, até sempre dizerem que tiveram orgulho em mim,

e noutros, mais ou menos, não faço ideia,

mas isso não eram coisas festejadas lá em casa.

Sais que eu entrei para a faculdade

no primeiro ano que houve a seguir ao serviço civil

que houve números clausos e exames da admissão.

Entrei com 16.

Era a nota mais alta.

Quando eu cheguei à casa e os disseram aos meus pais

de uma forma, enfim, eu fórica,

eu entrei, mas eu entrei com esta nota.

E meu pai, de uma forma despliciante,

respondeu-me,

não fazeste mais que a tua obrigação.

Isto, até hoje, recordo,

não sei se foi muito positivo, até confesso.

Mas diz bem de como ele achava

que nos dava essa responsabilidade.

Minha mãe, não, minha mãe ficou encantada

e orgulhosa e tal, mas o meu pai disse

que fazeste mais que a tua obrigação.

Sempre acompanharam a minha vida profissional desta forma.

E verbalizavam o amor?

Verbalizavam dando-nos confiança,

acreditando muito em nós.

Mesmo nos últimos tempos,

dizendo-nos que tudo o que tinham

que estava à nossa responsabilidade a partir da hora,

e sempre nos verbalizaram isso,

que haveria um momento em que nós teríamos que assumir

não só a nossa responsabilidade,

mas a responsabilidade sobre eles e das coisas deles.

E foi isso que nós fizemos.

Eu senti muito esse amor pela confiança que me era dada,

pela estima que me era dada,

por essa noção de que o meu pai sabe que eu sou capaz,

mesmo que ele não o dissesse.

Foi o imperativo moral acompanhá-los

e fazer tudo o que estivesse à sua alcance para...

Eu não sei isso.

Nós nunca fazemos tudo o que está à nossa alcance.

Não?

Não, não.

Isso é uma coisa dramática, sabes?

Nós sempre com aquela dúvida dentro de nós.

E se eu tivesse feito assim, se eu tivesse feito aquela maneira,

mas, enfim, dentro daquilo que eles queriam,

do que eu pude, acho que eles sabiam a filha que tinham

e eu também sabia os pais que tinha.

E, portanto, acho que é uma família igual a tantas outras,

com as mesmas dúvidas, com as mesmas questões.

Há procura da aventura humana.

Que me...

Que me...

Hoje, na somente ter sido diagnosticada com a doença de Parkinson,

como é que a Fatima conseguiu manter o discernimento, o profissionalismo...

Nós não sabíamos muito bem o que era a doença de Parkinson,

até vivenciarmos.

Digamos que eu nunca tinha convivido ninguém com Parkinson.

A minha mãe também não.

Infelizmente, porque se nós soubessemos o que vinha aí,

é tremendo.

Portanto, às vezes é melhor nem saber.

Fomos vivendo cada capítulo, cada dificuldade,

tentando atenuar, aliviar, até ao fim,

em que já não...

A minha mãe teve uma pega, não é?

Para ser alimentada, não é?

Deixou de falar.

Mas estava lucida.

Não tinha solução.

Não se podia mexer.

Nenhum músculo funcionava.

São doenças do fórum de generativo neurológico.

São muito comuns, no nosso tempo,

porque o pai dela morreu com 30 anos,

e uma parte das pessoas naquela época morriam com 40 a 50 anos,

o máximo.

A minha mãe morreu com 83.

Estas doenças estão cada vez mais comuns,

bem como as demências.

E nós deparámos com novos cenários sobre a humanidade,

que é como lidar com este envelhecimento,

que eu creio que é a maior questão dos nossos dias.

Como é que protegia, que amoflava a sua dor junto da sua mãe?

Bem, desde logo tive um problema gravíssimo,

é que no meio disto tudo, portanto, eu tenho um cancro de mama.

E quando me foi diagnosticado,

eu tive que ocultar da minha mãe.

Portanto, tive que ser operada,

tive que se mentir porquê que eu não ia.

Sou uma pessoa um bocadinho esquisita,

porque esperei para meter férias,

esperei que no neto nascesse,

para ser operada, não fui logo operada.

Quando a médica queria, disse-se,

está cá agora, espere mais um bocadinho.

Depois, lá fui operada,

e portanto, também tive que coordenar bem

para a minha mãe não se aperceber,

e eu lá consegui que a minha mãe não soubesse, nem meu pai,

que eu estava a ter um cancro de mama,

que tinha que fazer os tratamentos

e que estava a enfrentar também um momento difícil.

Que é uma bala grande quando se recebe notícia?

Sim, é.

Como é que lhe disseram a notícia?

Que era assim, tal e qual.

Pronto, é mau, é isto.

Fiz logo uma biópsia em vácuo.

Era inicial, ou seja, estava em paulos distintos,

mas era inicial, não tinha metardes.

Também não era de ter medo.

É absoluta para nada, não interessa nada.

É perguntar, há um caminho,

e normalmente, claro, sempre nos dizem que há.

Mesmo nas decisões mais difíceis, há um caminho.

Então vamos usar esse caminho. Pronto.

Tenha-se pragmatismo sempre nas adversões?

Tenho, tenho, porque não há solução, não há escolha.

Há um caminho, e claro, nem que depois vá achar

que já um bocadinho te vá bem reino,

não há estelação, mas vou fazer aquele caminho.

E escondendo dos meus pais, desde logo,

porque era tudo o que eles não precisavam

naquela situação já agónica da vida deles,

porque eles tiveram os dois muito doentes, até morrerem,

e, portanto, não prestavam-lhe a saber

que a filha tinha mais este problema.

Recuacionam-se as prioridades da nossa vida,

num momento como esse?

No meu caso, não, porque eu sempre estive.

Sempre estive.

Agora, que veja que o túnel pode acabar já ali,

claro, pronto, pode.

Vai acabar um dia.

Isto é uma ordem de precedência.

Agora vão uns, depois vão outros, depois vão outros.

Os bons primeiros, depois, é só essa diferença.

E há medecção e outros entram.

Quando o urso foi ouvir da sua mãe,

destrai-te, pense em ti.

Talvez a minha mãe tivesse essa noção

de que eu tinha dado a vida muito.

Talvez o que até, em certos momentos,

me tivesse sacrificado mais do que aquilo que podia.

No fundo, ela nunca soube do cánculo.

Mas podia o ter adivinhado.

Pela maneira como eu não havia vivido.

Eu podia ter adivinhado esse momento.

Mas eu vi como um incentivo para o resto da minha vida.

E é isso que eu estou a tentar fazer.

Eu vou tentar viver com alegria,

com a trinura dos que vão ficando mais velhos.

Mas com alegria também daqueles que sabem

que há outros que vêm atrás

e que temos que acarinhar

e que temos que introduzir

nesta coisa que se chama terra.

Esses dois exemplos, seu pai, quando disse

que eu sou bem distraite, vai viver.

Tenho muito a ver com eles.

A minha mãe era vai-dolezer.

A minha mãe gostava de se arranjar.

Ela mesmo com o pai, quem se ensinava,

podia ser mais feliz em poder fazer uma viagem,

em sair comigo para almoçar,

em poder estar com uma conversa.

Meu pai era mais austere.

E portanto, naquela austridade,

ele entendeu que eu não deveria ver aquele momento.

Aquele momento não era para eu ver.

Querias me proteger.

A minha mãe sabia que eu tinha que viver

e que talvez me fizesse bem distrair.

E portanto, ela disse-lhe assim,

vai sentir muita minha falta.

A impensamento.

Que é uma coisa que na altura até me surpreendeu,

porque ela estava tão mal,

mas já ela tinha razão,

porque ela tinha vivenciado a perda da mãe dela.

E o impensamento é a orfandade,

o sentir a orfandade do pai e da mãe.

A tal figura que gostou mais de ti do que de tudo,

essa figura já não existe.

Está na tua memória, está dentro de nós,

está a amazar força.

Mas ela partiu.

Sempre que penso nela,

penso com gratidão, com alegria,

mas também com tristeza, porque não dizia-lo.

É costa escrever isto, descer ao fundo de mim própria.

Foi muito doloroso voltar a pensar,

porque aquela pessoa faz muita falta.

Faz-me falta impensamento.

Todos os dias?

Todos os dias me faz falta a ideia da minha mãe.

Eu tenho um quadro,

que era o quadro dela,

ela tinha um quadro que chamava o retrato.

Meu retrato.

E que a minha mãe tinha muito orgulho do quadro dela.

É um quadro que ele pintaram quando ela tinha 18 anos

e que está na minha casa.

Eu mandei o arranjar e disse à restauradora,

quanto tempo vai demorar?

Ela disse um mês, eu disse, não pode ser.

Tem que ser menos.

Ela disse, mas por que?

É assim tanto tempo.

Eu disse, é porque esse quadro não é um quadro,

é um espírito.

E ela sorriu-se.

E passado que as dias ligou-me e disse,

o seu espírito está pronto.

Eu fui fiscal e eles já estão no mesmo sentido.

E precisa de o olhar todo dia?

Preciso.

E às vezes até falo com ela ou lá mamãe,

falo se lhe pôr umas flores.

Aquele quadro é muito importante para mim.

Fátima escreve que o momento mais impacto

em sua vida foi quando

havia uma sua mãe morta.

Compreendeu a morte física nesse momento?

Eu pensei que tinha compreendido

quando a minha avó morreu,

até porque a minha avó, a minha mãe dela,

eu achava que tinha sido a pessoa mais notável

e persistente e mais forte

que eu conheci na minha vida.

E era, de facto.

E quando havia morta, aos 90 anos,

claro que foi uma coisa até um luto

que fiz de uma maneira muito engraçada,

porque eu fui para o cemitério todos os sábados.

Eu ia armada de vaçoras, baldes e flores.

E ia sempre ao cemitério fazer um certo trabalho

numa rotina.

Não fiz isso com os meus pais,

até porque foram cremados.

Mas quando eu vi a minha mãe morta,

tive uma expressão que me recordo,

que foi e agora.

E agora?

O choque é, talvez, ainda maior.

Talvez porque estamos mais velhos.

Talvez porque somos a linha a seguir.

Talvez porque há um elo indestrutível,

indestrutível, maior que o mundo.

Que é o elo de uma mãe com um filho.

Que talvez seja até misterioso também.

Que é o da maternidade.

É um elo indestrutível.

Os generalianos costumam dizer-me

que quando fez as comissões no ultramar,

os soldados caíam no campo de batalha,

por minas ou no combate,

nunca os ouviu gritar pelo pai.

Gritaram sempre,

oh, minha mãe, mãe, mãe,

chamavam-me pela mãe.

Isto é uma coisa que se procura na mãe,

é tal que, generosamente,

nós não queremos que os nossos filhos passem.

Vai-te embora, que eu aguento-me sozinho.

É isto que o meu pai me estava a dizer.

Essa generosidade que se tem com o filho,

tem-se também com a mãe,

mas procuramos sobre tudo o que eu chego.

A nossa casa, não é?

É a mãe.

Outro.

É uma relação terrina.

Voltar à casa com seu irmão,

foi um processo doloroso?

É, muito doloroso.

Porque tu sabes que as casas

são guardiãs de cheiros, de objetos,

de coisas que lhes pretensieram.

E a casa dos meus pais era grande.

É uma experiência difícil.

Difícil e complicada.

É quase também uma invasão

do espaço deles.

E agora temos que tomar decisões.

E mais uma vez corajosamente,

tem que se dar à frente.

Até porque eles nos pediram.

Se há experiência,

se há comportamento que eu conservo

de tudo isto,

é que os meus pais nos ensinaram a morrer.

Foi a maior lição de vida que eles nos deram.

Foi ensinar-nos a morrer também.

Como nos despedirmos uns dos outros.

Eles prepararam-nos

que iam sair de cena,

que iam nos deixar.

Que nós agora é que tínhamos de tomar conta

que tínhais chegado o tempo.

Meu pai costumava dizer,

está aqui a minha árvore,

que éramos nós e os netos.

Dizia-o com muito orgulho,

mas dizia-o também preparando-nos

para esse embate final.

Agora conservem-se uns aos outros juntos.

E apoiem-se,

alarguem-se o mais que puderem a todos os outros.

Porque é tal que estou humana.

Eu acho que os meus pais construíram mais de que ninguém

essa questão humana

do próximo do outro,

de que nós estamos aqui neste planeta

em rede com todos os outros.

O que que a sua avó era tão mutável?

Porque no tempo em que ela ficou viúva,

em 1933,

não era habitual uma mulher ter que trabalhar

e ter que se sustentar sozinha.

Aí ela e a filha.

Ela filou-se a nunca mais ter casado,

sempre está de nenhum homem.

Se chegar aos braços dela era como chegar ao céu?

É, era quando vinha de Comboio.

Nós vinhemos de Valência, Pelesboa.

Quando chegávamos a Santa Bologna,

a minha avó estava no cais.

E eu lembro que já era quase meia-noite,

e vinhemos ser a sua sona, o compartimento.

A minha ideia era espreita pela janela.

E via sempre um braço muito alto,

que a minha avó era alta.

A cenar lá no fundo era a minha avó.

E depois, é isso que eu te conto no livro,

cair nos braços dela era como se chegar ao céu.

Que ela era muito carinhosa.

Era uma pessoa que ansiava, também,

por aquele momento.

Foi fato de eu me aqui vesti-o quando ela fosse?

É.

Temos que fazer essas coisas, não é?

Lidar com a morte é um ato do amor.

E eu não queria que mais ninguém fizesse

aquilo à minha avó,

porque ela tinha me designado a mim,

tinha deixado a sua roupa destinada.

Até tinha dito como é que queria que fizessem-nos as mãos,

os pés, tudo isso.

E tinha tudo designado ao menor.

E, portanto, para mim foi um ato do amor.

Mas tudo?

É, na altura é.

Depois, com o tempo,

percebemos que é uma privilegia,

porque é tudo muito rápido.

E, portanto, temos que estar preparados para isso.

E o quanto é o amor e a compaixão

como uma alavanca da velocidade?

É.

Quem não perceber isso, nunca mais vai ser feliz.

Quem não sente estar pelos outros,

quem não perceber que é o braço que se estende,

que é o mais importante,

ou é a compreensão que você é capaz de dar ao outro.

E é que está o amor, é que está a compaixão.

Com a compaixão não é de ter pena.

Com a compaixão é estar com o outro.

E isso é que significa a palavra compaixão.

Vejo a vida dessa maneira,

sem otimismos desbaragados

e ilusórios e parvos,

sem gargalhadas fáceis,

mas também com alguma alegria.

E o amor como única grande-grandeza do mundo?

É única.

Tens mais alguma.

Ora ensina-me.

Diz-me qual é.

É o amor que tens pelas pessoas,

pelos teus colegas, pelas teus filhas,

desde logo, pela tua mulher,

pelos teus pais, pelas teus famílias.

Não temos outra grandeza no mundo.

É o amor, é a tornura,

é aquilo que somos capazes de aplicarem

em função do amor, de darem em função do amor,

das nervosidades somos capazes de ter.

A questão humana tem que ser prioritária.

Ensinar-la para quem não a entende,

não é intuitiva.

Nem todos nós temos com esse livro

fácil de instruções,

com esses beijos que nos dão à noite,

mas temos que ensinar a puxar,

temos que lhes colocar na frente a evidência

do amor e da tornura.

A fatima é hoje uma mulher mais só.

Somos todos sós,

mas temos sós e boiamos sós.

Mas ao longo da vida,

vamos tendo os nossos encontros.

A minha solidão

acontece muitas vezes por causa do que eu quero.

Sou um bocadinho como a minha mãe.

Tenho que ter meu tempo,

gosto de estar comigo própria,

gosto de curtir-me as minhas mágoas,

também comigo, sozinha.

Quão importante é que foi o manel na sua vida?

Tanto importante,

foi de 30 anos, quase 30 anos.

São encontros

inolvidáveis,

de tornura, de tudo.

Enfim, a vida é o que é.

Há sempre um tempo em que nos temos que despedir.

E ter a resiliência de tal como da morte de seus pais,

tentar seguir em frente,

não há outra alternativa?

Tentar-se de não há alternativa, não há escolha.

Pense que a primeira ordem de razão

para fazermos o luto

é a aceitação.

E depois,

também percebermos que as pessoas estão doentes

e que não podem persistir

muito tempo em zonas de sofrimento.

Portanto, temos que acabar por aceitar.

Assim como acabamos por aceitar a nossa própria

saída, não é?

É evidente que conseguimos evitá-la durante

muito tempo.

Até que um dia,

ela nos avanha com certeza.

Despediu-se do manel?

Despedimos.

Todos nos despedimos.

Dentro do possível.

Dentro do possível.

Isso é mais doloroso do que foi com os seus pais,

em que houve uma conversa mais consciente?

É diferente.

São mortes diferentes.

Antes uma, mais antes do tempo.

E outras,

por doenças que se arrastaram muito tempo.

Como é que recebeu os abraços

de todas as pessoas que quiserem abraçar

há tão pouco tempo?

Com muito carinho.

É uma grande generosidade a parte delas

e um grande apoio.

Que atenua alguma coisa?

Atenua, atenua.

Eu percebisse na morte dos meus pais.

Até aí eu não tinha verdadeiro entendido

como era importante irmos dar um abraço

a alguém que perde o familiar.

E naquele instante,

é que eu percebi que o A, B e C

são muitos meus amigos e que vêm,

que me abraçam e que estão ali comigo.

É uma coisa impressionante,

o que isso nos faz de bem.

Eu tenho amigos desses.

Tenho, por exemplo,

um amigo que na hora da morte do Manuel

foi o primeiro ou o segundo a chegar à minha casa,

que era o meu realizador ou o irmão,

que tu conheces.

De que história?

E a ficar.

A chegar e a ficar.

A ficar.

Não vou.

Eu fico aqui.

Essas atitudes estão extraordinárias.

Em silêncio eu sou preciso.

Em silêncio.

A Neninha Andrade Silva,

tanta gente,

há outras pessoas que ninguém conhece,

mas que são minhas amigas do coração.

Eu posso estar na Conchingina,

que eu sei que às das pessoas,

no silêncio delas,

estão comigo.

É mais importante, claro,

que é o tal infinito.

E a Fátima precisa de palavras

para essa catarse ou de silêncio.

Você não pode se estar no silêncio.

Não preciso de palavras.

Eu sei que elas estão ali.

Agora, quando se morra alguém,

é importante essa presença.

Muito importante.

E sentir que não se está só.

Claro.

Claro que sim.

A vida reveste pessoas para si de saudade.

Reveste-se de muitas memórias,

de tornura,

de aprendizagens diferentes.

Eu sou o resultado dessas aprendizagens,

mas eu tenho muita esperança.

E a minha maior esperança é nos outros.

Eu tenho esperança no futuro.

Tenho esperança de continuar a ser feliz

e que as coisas que sigam o seu caudal,

os rios das saudades, das tristedas,

vão aparar também do rio da alegria,

daquilo que é a semente da esperança

que eu quero deixar aos outros.

Porque eu preciso viver.

Viver é imperioso.

A vida é para ser vivida.

E é para aceitar aquilo que não é da vida.

Tem que se aceitar.

Espero que a vida ainda me traga coisas boas.

É o que os meus pais querem.

E que o Manel cria também.

Depois de tantos anos de ser cuidadora de tantos.

E de trabalho.

E há sempre um sentido para isso,

para se ter doado tanto.

Foi essa aprendizagem que eu tive com os meus pais,

da dádiva ao outro,

de perceber que não estamos aqui sozinhos,

que só existimos em função do outro.

Existimos porque estamos em comunidade,

estamos em rede.

E também se cumpre naquilo que deu aos outros.

Claro.

Claro que sim.

Como é que faz agora quando há tempestades e troboadas?

Aqui na cidade há poucas já me dispara raios.

Mas quando eu via em Valência,

muitas ventanhas, troboadas.

E um silêncio mortal.

Um silêncio asovio ao vento.

A soparar, a soparar.

Padre António Vieira tem uma expressão muito interessante.

A vida é pó levantado.

É pó com vida.

A morte é pó deitado.

É pó sem vida.

E é isto que nós somos.

É o pó.

O que é que os seus filhos trouxeram a sua vida?

Maneiras diferentes de pensar,

de estar,

trouxeram-me juventude,

trouxeram-me a continuação do amor.

É o melhor que nós temos, não é?

É a tornura dos netos já.

E a noção de que eles têm que viver a vida deles.

Não como eu vivia a minha,

mas com a maneira de estar e de pensar deles.

Deixá-los voar a um processo fácil?

Sim.

Hoje é.

Hoje é.

Na Valência você não foi.

É um processo sofrido.

Mas hoje é.

O meu papel terminou, não é?

Não é agora que eu vou educar,

não é agora que vou dizer que...

Não, o meu papel agora é acompanhar.

No sentido de que estou lá deles,

para o bem e para o mal.

Estou lá deles.

Como é que conciliou a vida profissional com a vida de meio?

Fui conciliando.

Não há milagres.

Portanto, umas vezes bem, às vezes mal.

Falei muita coisa estáicamente, não é?

Lembro-me que essa é a madrinha da minha sobrinha,

quando o Jéssora Má ganhou o prêmio Nobel e já não fui.

Fui enviada especial.

E a minha sobrinha que me estava a vir até hoje,

estava a nada com isso, não é?

Falei muita coisa em função daquilo que eu achava

que era uma missão maior.

E também uma missão que me deu muito prazer.

Alguma coisa que os seus filhos tenham dito que tenha sido

especialmente marcante para si?

Talvez para eu pensar também mais em mim

e me distrair as mesmas palavras da minha mãe.

Talvez nessa linha, sim.

Uma pessoa com este espírito realmente facilmente se esquece

de si própria, não é?

Mas vamos indo, vamos navegando e vamos sendo feliz.

A passagem do tempo é um problema?

É, é nas maléitas.

Estou mais perto do fim, não é?

Sou um bocado realista e cruel, até para mim própria, não é?

A minha mãe que estava a dizer uma coisa muito engraçada,

que dizia assim,

há uma coisa que ninguém me tira,

é que eu fui muito bonita, pronto.

Há uma coisa que ninguém me tira, é que eu fui nova.

Fui nova.

É fácil ser-se novo.

É fácil, muito fácil.

Ver um muro para saltar e eu vou saltar e salto.

O problema é quando nós não conseguimos saltar o muro,

mas pensamos, mantemos as competências todas,

mas depois falta a solidariedade física.

E o país não está preparado para o envencimento.

Está muito longe disso.

Essa é a grande questão.

Aliás, meu pai chama-me a atenção disso.

Nos últimos tempos da vida dele dizia-me,

o envencimento é o principal problema que vão enfrentar.

É bom chegar a velho, mas também é difícil.

Os velhos, hoje em dia, na sociedade,

são vistos como um empecilho, quase?

Também isso, não é?

Quando muitas vezes estão eles que poderiam evitar desventuras,

como as guerras que estamos a vivenciar,

ou coisas mais comezinhas, até mesmo nas empresas,

atitudes impulsivas,

falta de compreensão, de conhecimento, de desilusão.

Os mais velhos têm um acompomente

que podem pôr em cima da mesa

e que os mais novos vão ter, se Deus quiser,

mas ainda não têm.

Depois há aqueles que aprenderam à força.

E tu és um deles.

Minha admiração por ti.

Ora é essa, Fátima, muito obrigado.

Já fomos colegas, né, RTV?

É verdade.

Muito obrigado.

É recíproco à admiração.

A mudança para Lisboa foi muito exigente para si?

Foi.

É sempre exigente.

Como eu levo tudo muito a sério,

eu levei a coisa sempre com muita responsabilidade.

Foi porque quis morrer bem.

Eu fazia o jornal da tarde,

tu sabes disso, me fazia estar a jornal.

O teste terminou há minutos,

e antes o jornal da tarde

foi procurar ouvir algumas reações.

No meio de tão concorrencial, o que é que foi mais difícil?

Sim, é o meio muito concorrencial.

Eu percebi duas coisas com o prós e contras.

É que o país tem um grande problema,

não se articula.

Ninguém se articula neste país.

É uns para cada lado.

Nas instituições,

e particularmente também nesta profissão,

obviamente que nos deparamos com legos,

com polítiquices,

com grupos de interesses,

que tive que lidar com isso tudo da melhor maneira que eu sei,

e que consegui nem sempre bem.

E muitas vezes até com alguma coragem desmascarando,

quanto mais vou andando na vida,

mais coragem voltando para enfrentar.

Há seis meses consecutivos,

que aumentam o número de desempregrados inscritos

nos centros de emprego.

O prós e contras é o projeto da sua vida?

Talvez.

Pense que para a sociedade portuguesa foi,

porque é um projeto com muita força,

foi mancura da sociedade portuguesa,

e eu senti isso porque a sociedade acabou por adotar

aquele projeto de ideias nas escolas, nas empresas,

em muitos sítios.

O debate passou a ser visto até de outra maneira.

Digamos que é um projeto de cidadania,

talvez por aí seja o projeto de vida.

Agora eu gosto muito do que estou a fazer,

tenho uma equíva maravilhosa,

e eu gosto muito desta minha fase intimista,

porque posso descer ao fundo do meu entrevistado,

como agora estou aqui a fazer contigo.

Fez o que queria ter feito?

Realizou os sonhos que tinha?

Acho que só...

Os patetas é que dizem que realizaram tudo.

É evidente que acho que podia ter me rentabilizado

mais a mim própria,

não trabalhado mais que eu trabalhei muito,

mas utilizado melhor os meus talentos,

as minhas capacidades,

eu podia ter feito melhor aqui e ali,

e até empreendido outras áreas.

Na política, por exemplo?

Não, não, não.

A política tal como está, não interessa,

é muito complicado.

Talvez se eu tivesse tido um projeto empresarial,

eu me tivesse saído bem.

Eu tenho alguma fibra de liderança,

talvez isso tivesse sido bem orientado para uma empresa,

e eu hoje até fosse uma pessoa bem-sustida,

quem sabe, ou tivesse falida, não sei.

Uma coisa boa.

De que é que mais se orgulha?

Ter sido capaz de construir o meu projeto de vida

e ter coragem para seguir sempre e só a minha consciência.

Eu fui sempre muito fiel à minha consciência,

e sou...

Talvez isso seja a minha maior característica.

Eu tenho um sentido de justiça na minha cabeça,

sou capaz de tomar decisões,

e sou fiel à essa consciência.

Mesmo que é o que eu tenho a cair

no próximo buraco que está já ali,

é a minha consciência que vai editar o que eu tenho que fazer.

Não só interesses,

não só lobis,

não só amizades,

não é nada disso.

É a minha consciência.

Isso eu orgulho muito, certo?

Como é que é a relação com os seus netos?

Quer ver, eu adoro-os,

mas eu não sou aquela avó da torte a direito de estar ao pé deles,

porque eu tenho muitos interesses na minha vida.

Eu sou uma pessoa que lê muito,

que gosta de pessoas,

que gosta de contactos.

Portanto, eu tenho uma vida variada,

e os meus netos são fantásticos.

No tempo deles,

quando eu penso na minha cabeça,

hoje é para os netos.

Na continuação desta obra que os seus netos escreverão,

daqui a algumas décadas,

que capítulo é que gostaria que fosse dedicada à avó?

Aquela que persistiu,

que sofreu, que caiu,

mas que se levantou,

que persistiu,

que enchegou as lágrimas e caminhou,

e foi em frente,

e lhes disse que isto é para fazer,

é para ir até ao fim,

é para viver,

e é para passar a testemunho,

e com alegria.

E esse exercício de dignidade sempre público,

que a Fátima faz questão de ter,

e de honradez,

e de retidão,

é maior do que o que a Fátima é,

no sentido em que é algo que vende de dentro.

Não sei se é assim como tudo isso,

mas eu fico um pulizãojiado,

por tudo dizer-se essas palavras,

mas seja como for,

é sempre algo que vende de dentro.

E eu não sei se é de outra maneira,

não sei disfarçar,

não sou a pessoa que saiba

construir papéis.

Não.

Na primeira volta, na primeira curva,

estou a dizer o que penso.

E era assim que eu fazia no Prósio Cobras,

eu até podia começar,

com uma pronúncia bem colocada,

à Lisboeta e tal,

mas quando me irritava com alguém,

começava a falar mais à Porto,

porque já estava ali,

a pisar um risco qualquer.

Eu sou essa,

pronto, sou essa,

sou assim.

Se fosse garantido uma resposta,

uma qualquer pergunta sua,

o que é que quereria mesmo saber?

Onde são os meus pais,

onde está o manéu,

onde estão todos aqueles que nós amamos.

Não os vamos ver,

mas será que algum dia os vamos sentir?

O que é que está do outro lado?

É a grande questão humana.

E é para isso que vivemos,

é para descobrir.

Alguém lhe deve um pedido de desculpas?

Não,

porque aqueles que o devem,

estão desculpados por natureza,

pela minha natureza.

Qual foi a coisa mais bonita

que já te seram sobre si?

Eu não atento muito

àquilo que dizem,

de bem, de mim,

não faço ideia.

Aliás, eu tenho um pesquisador,

quando eu fazia o Prósio Contras,

vinha a correr, sempre mostrar-me

uma crítica positiva e de mim dizer,

olha, olha que bom alho,

o que ele se descreveu.

E eu dizia-lhe sempre,

calma,

não interessa para nada.

Mas eu tenho um pesquisador,

quando eu fazia o Prósio Contras,

calma, não interessa para nada.

Mas não interessa por quê?

Porque amanhã é bem mamá,

e eu tenho que aguentá-la na mesma.

E se eu agora ficar muito contento com este,

amanhã não aguenta mais.

Eu tinha sempre este calibre,

de estar a pensar,

que tinha que relativizar tudo.

Nunca vivi nada em tensamento muito bom,

e relativizo também o bem a seguir.

Pronto, vivo neste equilíbrio,

não sei se isto é saudável.

Se calhar,

ele destrai-te, olha.

O que é que dizem?

Estas olhos?

Que soueste, assim,

sem filtros.

E normal,

eu acho que a maior qualidade que se pode ter,

é ser normal.

Normal significa que,

que temos alguma perspectiva sobre nós próprios,

que nos colocamos em perspectiva,

que sabemos por-nos ali,

ao fundo,

e olhar para nós e vermos,

não distanciar muito dessa realidade,

não pensarmos que somos alguma coisa de transcendente,

porque nós somos,

somos um entre muitos,

entre bilhões.

Muito obrigado.

Obrigado.

Obrigado, Daniel.

Machine-generated transcript that may contain inaccuracies.

A jornalista Fátima Campos Ferreira foi a convidada de Daniel Oliveira no Alta Definição desta semana em podcast. A lançar o livro "O Infinito Está nos Olhos do Outro", Fátima Campos Ferreira admite que o grande objetivo de o escrever era o "luto". Numa conversa franca e com a família no centro, a jornalista e apresentadora falou da dor provocada pela morte dos pais, que perdeu com quinze dias de diferença um do outro. "A minha mãe morreu com Parkinson, e isso foi uma coisa muito difícil de assistir. É qualquer coisa de muito assustador. E eu tive, talvez por isso, muita dificuldade em fazer o luto. Ela já morreu em 2017, e está muito viva dentro de mim. E sempre que eu tenho de fazer este exercício de pensar, ou de escrever, ou até rever agora o livro, isto é uma ferida que eu tenho. Eu sofro com isto", lamenta. O Alta Definição foi emitido a 01 de abril na SIC.

See omnystudio.com/listener for privacy information.