Bate Pé: A História de Karla

Mafalda Castro e Rui Simões Mafalda Castro e Rui Simões 10/4/23 - Episode Page - 15m - PDF Transcript

Esta é a história de Carla, uma menina que tinha o sonho de encontrar o verdadeiro

amor.

No maldeia muito pequena, no riba Tejo, com cerca de 12 quilómetros quadrados, três casas,

um café central, uma loja de meias e a associação dos amigos do Linci Béreco, vivia Carla.

Carla com capa, uma menina de olhos claros, cabelo cor de cortiça, um sorriso ingênuo

capaz de derreter o mais frio dos corações, e um sinal na bochecha.

Traços estes, comuns a muita gente.

O que diferenciava esta jovem, com 29 anos, nascida a 29 de fevereiro e que, tristemente

só como morava o aniversário de 4 em 4 anos, era a forma obstinada com que procurava

o verdadeiro amor.

Esta determinação começou quando, na infância, a sua mãe Alberta, mulher de rosto fechado,

este coração aberto para ajudar os que precisam, decidiu mostrar a Carla o filme Diário

da Nossa Paixão.

Tudo isto aconteceu num dia de temporal.

Carla tinha planeado, nesse dia, ir jogar a macaca com o amigo Esteves, mas rapidamente

a chuva e o vento trocaram-lhe as voltas.

Malella sabia que aquele dilúvio era o melhor que lhe podia ter acontecido.

Não porque viu o filme nesse dia, mas porque a agricultura estava a precisar.

Ah, esqueci-me de referir que Alberta era uma mulher bastante distraída, e que se

enganou a fazer o download no emula.

Em vez de sacar o Diário da Nossa Paixão, sacou o novo álbum do Fifty Cent.

Sem grande problema, até porque ambas eram fãs de hip-hop.

Nessa mesma noite, aproveitaram as duas um belo serão entre bolos caseiros e a música

Pimp, que acantaram repetidamente.

Passaram-se quatro dias, até que, finalmente, o filme estava descarregado.

E é nesse preciso momento que Alberta decide ter uma conversa com Carla.

Filha, senta-te aqui.

Que se passa, minha mãe?

Olha, finalmente, acabei de sacar o filme, preciso dizer uma coisa, ou melhor, duas.

Lembra-me agora.

A primeira é que pirataria é crime.

Mas tu é pirata, mãe.

Mais ou menos, filho.

Mas eu não te vejo com uma pala no olho e tens os dentes todos.

Sim, esquece essa parte, filha.

O que a mãe te quer perguntar é se queres mesmo ver este filme.

Isto porque vai mesmo mudar a tua vida, as tuas prioridades vão ser outras.

Como assim, mãe?

É que o que tu achas que é verdadeiramente importante na vida, se calhar, vai mudar.

Achas que vou deixar de gostar de jogar a macaca com os teves?

Ai, filha, caga-me e se vê o filme, pronto.

E nesse mesmo dia, depois de ver o filme, a vida de Carla mudou.

Estava decidida a encontrar a alma gêmea.

Anos passaram, hábitos mudaram e Manoel-Louis-Goscha deixou cair o bigode.

O jogo da macaca deu lugar ao Discman, Zé Maria fechou sem barrancos e nunca mais deu

uma entrevista.

O MP3 era tecnologia de ponta e os primeiros pelos nas axilas e um bigode virgem surgiam.

Carla não era mais uma menina, Carla tinha se tornado um adolescente.

Todos estes anos não acalmaram a vontade de encontrar a grande paixão.

Busca é essa que já tinha feito por toda a aldeia.

Chegou a conversar à sua mãe que os teves poderia ser um bom partido, mas irritava-lhe

o facto de o rapaz andar sempre vestido em tons de verde seco, como se fosse um guardafluor

stale, e o seu sabor de gelado favorito ser caramel salgado.

Chegou a lanchar com o presidente da associação dos amigos do Linci Bérico, mas não passou

disso mesmo.

Um lanche.

A persistência começava a dar lugar à frustração.

A motivação transformava-se em tristeza.

Diariamente ligava à sua mãe, Alberta, agora em casas separadas, para lhe contar que tinha

sido mais um dia sem sucesso.

Bom dia, minha mãe.

Bom dia, minha filha, mas que tristeza na voz é essa?

Não é nada.

Ontem fui assistir ao jogo do Alcanena e berrei mais do que a minha voz aguenta, por

isso é que está assim.

Vá, conta a mãe, sabes que tu conheces como ninguém?

Desde o dia em que a enfermeira na terra, você chegou à epidemia e disse que pesavas

3,100kg e não tinha estournos eles, que eu sei quando estás triste.

Bom, a mãe já viu isto.

Já viu o que, Carla?

Sou uma menina mulher, nunca mais encontro a minha alma gêmea, e já dei a vota toda

a aldeia.

A mãe tem uma ideia, se vendéssemos as nossas casas e arrumássemos a Lisboa, há mais

gente.

A minha casa é de palha, isto não vale nada.

Querida, vendemos ao tio João, para a habitação não dá, mas ele tem 6 cavalos, chefe para

alimentar os bichos.

Obrigada, minha mãe, obrigada.

Carla e Albertas estavam assim de malas aviadas, para Lisboa.

A despedida decorreu como esperado.

Foi feita uma grande festa na associação, com direito ao concerto dos irmãos verdades,

agora mais baratos porque o vocalista deixou a banda.

Um banquete digno de época media vala, cheio de frango, batata titi, quiche de frutos

do bosque e para acabar, café com cheirinho para todos.

Tudo isto patrocinado pelo tio João, que vendeu dois cavalos e uma mula, um dia memorável

para mãe e filha.

Por motivos diferentes, um dia marcante para Esteves, que via assim partir a sua amiga

de infância.

Antes de partirem, Esteves se greva algo ao ouvido de Albertas e dá-lhe uma chapada

a padrinho.

Fita Carla com um olhar de tristeza, como se estivesse a olhar para a vitrina de uma

pastelaria e o único doce disponível era a pirâmide de chocolate.

Volta a costas e dirige-se para a associação, com o objetivo de afogar as mágoas.

Foi então a última vez que se cruzaram.

Carla estava eufórica e sua mãe, feliz por ter ajudado a filha.

Quando chegaram à Lisboa, depararam-se com um problema que desconheciam.

Carla, temos um problema.

Que foi, minha mãe?

Esqueces de trazer as cova-dentres?

Não, sabes que também não lavo as dentres para não desgastar o esmalte.

Então, o que se passa?

É que a mãe veio viajem toda, à procura de casa no imó virtual, no idealista.

São todas muito caras.

Quantas vísseis?

Três.

Mas a viagem demorou duas horas.

Sabe-se que a internet no auto-carre é uma merda?

Ok, então vamos a esta merceria comprar uma molancia.

Pode ser que eles tenham um wi-fi e procuram juntas.

Sabe-se que duas cabeças pensam melhor do que uma.

E, sem saber, Carla decidiu entrar na merciaria, com uma estética muito particular, que iria

mudar a sua vida.

Bem-vindas à Merciria-Alcides, a única merciria em Lisboa com a fruta-esposta em cabidos.

Alcides era um rapaz bem disposto, animado.

Via-se sempre as coisas pelo lado positivo.

Cada vez que o seu clube do coração perdia, dizia-se sempre aos seus amigos.

Pensa que há pessoas felizes por termos perdido.

Isso enche o meu coração, a felicidade dos outros.

Era um jovem que gostava mais de dar do que de receber.

Apesar das prendas de nunca serem muito simpáticas.

A última vez, ofereceu à sua mãe uma papaya no aniversário.

Tinha dificuldades a encontrer a saliva e, por vezes, de forma ingenua.

Era um pouco desagradável.

Bom dia, Senhor Alcides.

Bom dia, minhas flores.

Esta já é um pouco murcha.

É sua mãe?

É sim, Senhor Alcides.

Não me trate por Senhor.

E muito menos por Alcides.

Olha, pode tratar-me por Al, ou se preferir por Sides.

Por Al não posso, porque a minha mãe chama-se Albert e às vezes também a trate por Al.

Que seja Sides, então.

Perfeito, faz-me lembrar a marca do detergente que usava para lavar a loiza na minha aldeia.

E se traz-me boas memórias?

De onde são?

Santarém.

E por que se mudaram para Lisboa?

Porque a minha filha tem a abissão de encontrar o verdadeiro amor.

Também eu.

Mas para dançar o tanque são precisos dois.

E neste preciso momento, Al se desolha para Carla com uma expressão meiga e doce e em sordina diz-lhe.

Ó joia, anda cá, oríves.

E sai de cena para ir pendurar duas meloas nos cabidos.

O corpo de Carla tremeu.

Parecia podinha acabado de tirar da forma.

Os nervos apoderaram-se dela.

As axilas pingavam a contagotas.

A boca secara de tal forma que instantaneamente começou a ficar gretada.

Nunca tinha sentido isto antes.

Um momento, pelo menos aos olhos da Carla, digno de filme.

Até os perdigotos que saíram da boca de Alcides, depois de proferir o piropo, fascinaram a jovem.

Ai, filho, o Sid desbava-se tanto.

Eu acho que estou babada de amor, minha mãe.

Ai, literalmente, Carla, que parece um som bernardo, limpa lá a boca, se faz chave.

É isto, tão isto, mãe, finalmente.

Então vá, procuremos casa aqui em Campo Dorique. Sid, qual é a posse do wi-fi?

Uma latina.

Passados alguns minutos de busca, Carla encontra aquela que parecia ser a casa perfeita.

Um T2 em Campo Diorique, no valor de 55 mil euros.

Divisões espassosas, secador instalado na parede da casa de banho, a fazer lembrar o balneário de uma piscina municipal.

Sanita aquecida para no inverno não pousar os glúteos em lois a gelada.

Camas já equipadas com o último grito dos colchões e lençóis lameirinho.

Tinha tudo.

Menos paredes exterior em condições.

Eram de papel selofanha, daí o preço reduzido do imóvel.

No verão, eram condições deportáveis, mas no inverno seria impensável.

Alberta era mulher encalurada. Várias vezes no inverno ia à associação da terra em topless, mas para Carla, este cenário era impensável.

Depois de trocar em umas ideias, Alberta lembra-se de uma forma para solucionar este problema.

Olha lá, minha cabecinha da pita, essa casa não tem problema nenhum.

Mas já experimentaste dormir numa casa com paredes de selofane?

Não é um pá, mas não é preciso comer com a copa para saber que é mau.

Mas não dorme numa casa com paredes de selofane? Esquece.

Não é isso. Carla te ouve.

Ouve com o H ou sem H, minha mãe?

É com o sete Calat. Escuta, a mãe tem um contacto lá na terra que faz esta dempreitada por um valor simbólico.

Vamos a três porquinhos unipessoal e falamos com o dono.

Por que que é unipessoal se eles são três?

São um, os irmãos foram comidos por um nobo, pelo menos é a história que se contava lá na associação.

Falamos com o dono, acho que ele faz umas paredes de jogo muito boas e temos o nosso problema resolvido.

E assim foi.

Casa construída e, finalmente, Carla podia dedicar-se ao que a trouxe a Campo de Oric.

Encontrar a sua alma gêmea que, pelos vistos, estava na mercearia alcidas.

Tal como em qualquer romance, tudo começou com umas brincadeiras, olhares, provocações, alguns presentes por parte de alcides,

uns mais conseguidos do que outros.

No primeiro encontro que tiveram, Sides ofereceu a Carla uma moldura com a sua cara desenhada.

Os olhos eram duas tangerinas, o nariz um urango, a boca uma fatia de melão,

o sinal de Carla uma mosca da fruta e o cabelo foi feito com fios de banana.

Mas, nem por isso, o encanto por este homem esmureceu.

De tal forma que acabaram por se juntar.

Três anos voaram.

Sides, tu somos felizes juntos.

Ah, tem dias.

O que se passou?

É que eu estou farto levar com a tua mãe lá em casa a ouvir hipópia. Eu já lhe disse.

MED PROVE GEM. A tua Lizard já não posso com 50 cento.

Está bem, mas sem ser isso.

É que eu antes fui lavar os pés no bidet e o ralo estava cheio de cabelos outra vez.

Mas por que que tu lavas a cabeça no bidet?

São as minhas manias. O que queres?

Pois que me irritou um bocado.

Eu também não gosto de andar com a casa constantemente babada.

Para falar contigo, eu preciso um guarda-chuva.

Isso foi tão feio o que acabaste de dizer, Carla?

Não tão feio como as tuzunhas dos pés.

Desculpa, Sides, desculpa.

Preciso de dar uma volta.

De quantos graus?

Ai, Sides, estava a brincar. Era para relaxar o clima.

Então relaxa aí sozinha que eu vou bazar.

E saiu o porta fora.

Voltou cinco dias depois.

Apenas porque foi encontrado pelas autoridades.

Carla e Albert meteram a polícia à procura de Sides.

Foi descoberto em Ibiza, num barco cheio de gente famosa.

Nomeadamente o DJ Tiestel.

Passados dez anos, a monotonia tomou conta da relação.

Sides tornou-se um homem azedo,

como qualquer melancia depois de estar três dias ao sol.

Sem razão que motivasse.

Carla começava a dar sinais de insatisfação.

E mais uma vez, a sua vida iria dar uma volta de 220 graus.

Sidenha, vais lá abaixo pescar os tomates do Sides.

Quer fazer as jequinhas com o rosto de mato? Não tenho.

Não vou, mãe. Se quiseres, vai tu.

Já sabes como custa andar por não ter turno zê-los.

Tomas tu ainda ontem lá a foz?

Eu sei.

Mas passa-se alguma coisa com o Sides.

O problema é mesmo esse, não se passar nada.

Oh, filha, não sabes como é que ele é.

É muito atarefado.

Quando tu queres arranjar tempo para fazer alguma coisa,

por muito ocupado que seja, as tu arranjas.

Não é bem assim, pá.

A semana passada foi jogar o bowling com o Carlos.

Ontem apanhei-o a ofmar um charuto à porta da merceria

depois do trabalho.

E tu sabes que um charuto ainda demora tempo a acabar?

E eu, mãe? E eu?

Oh, filha, sabes bem que charuto foi o Conselho do Médico

para ver se acalmo-se três, pá?

Eu sei lá, olha, já estou com aquele, mãe.

Eu só sei que nada sei.

Mas tens de ter paciência, meu amor.

Mãe, o que é que os teus te disseram há dez anos

quando estávamos a despedir antes de vir para Lisboa?

Pergunto se o teu pai era bombista, porque tu és uma bomba.

Carla arrepia-se.

Os olhos enchem-se de lágrimas como se tivesse cataratas.

Por que que não me contaste isso antes?

Eu queria que experimentasses tivesse mundo

para depois decidir, mas no fundo,

eu sempre sou pequena aos teus.

Vamos embora, minha mãe.

E a casa e os Sides?

Que se foda!

Cometo aos charutos onde o sol não brilha.

Quanto à casa?

Metemos à venda

e ficamos a dormir na associação por uns tempos.

E nunca mais voltaram a campo de orique.

O resto da história é muito relevante.

O que realmente importa

é que Carla acabou por fechar com os teves

a melhor parceria de todas.

A doelixir do amor eterno.

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Como prometido, uma história que surgiu em conversa há alguns episódios. A História de Karla tem agora a dignidade e palco que merece. Esperamos que gostem deste episódio extra tanto como nós. Talvez um bocadinho mais até. Um agradecimento especial à MunnHouse, ao Diogo Pires que é o Narrador e à Maria Correia, a nossa protagonista.